desobedecendo
Porque estamos em todas as partes empenhad@s nas atividades formadoras do tempo vivo, do fazer vivo, visíveis ou invisíveis, com voz ou sem voz, pela dignidade de não falar pel@s outr@s, mas tecendo o comum das resistências e da insubordinação, desobedecendo...
Monday, January 02, 2012
A fábrica do homem endividado, de Maurizio Lazzarato
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A fábrica do homem endividado, de Maurizio Lazzarato
La fabrique de l’homme endetté, essai sur la condition néolibérale
Monday, August 23, 2010
Tuesday, June 29, 2010
Wednesday, April 14, 2010
MundoBraz em busca de uma esquerda pós-moderna
MundoBraz em busca de uma esquerda pós-moderna
Por Bruno Cava
(Imagem: “Antropofagia 3″, de Túlio Tavares)
Escrito pelo franco-italiano Giuseppe Cocco, radicado no Brasil desde os anos 90, MundoBraz é uma obra complexa que enfrenta os dilemas contemporâneos a partir do recente processo democrático brasileiro. O devir-Brasil, no título, refere-se ao surgimento de novos sujeitos sociais, programas políticos e formas de luta, repercutindo em múltiplas conquistas no campo da geração e distribuição de renda, da democratização dos bens culturais, das ações afirmativas e da valorização das periferias e comunidades pobres das metrópoles. O objetivo principal do livro reside em compreender as transformações econômicas, políticas e culturais do Brasil, sem perder de vista a sua articulação com fenômenos globais (o devir-mundo).
Graduado em Ciências Políticas pela Universidade de Paris 8 (Vincennes) e doutorado em História Social por Paris 1 (Sorbonne), Cocco é professor titular da UFRJ e mantém efervescente atividade intelectual e política. Além de editar publicações de esquerda, como as revistas Global/Brasil, Lugar Comum e a festejada Multitudes (Paris), ele também é autor de Glob(AL): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005), escrito a quatro mãos com o filósofo, amigo e correligionário Antônio Negri, além de Mundo real: Socialismo na era pós-neoliberal (L&PM, 2008), com o ministro da Justiça, Tarso Genro. Todos os livros de Cocco repercutem a sua prática concreta na militância pelo acesso universal aos direitos, fazendo dele um intelectual engajado que escasseia nos meios acadêmicos mais “duros”. MundoBraz examina problemáticas diversas, apontando as oportunidades e vicissitudes de cada luta concreta, porém sem conclusão definitiva, como uma espécie de work in progress, concomitante à vida militante. Portanto, não se deve esperar uma exposição linear e sistemática gradus ad Parnassum, mas um livro cuja (dis)forma decorre da urgência das lutas que é o seu conteúdo mesmo.
As obras de Giuseppe Cocco não se restringem a um campo científico específico. Na realidade, constroem-se na interdisciplinaridade. Cada assunto é abordado de vários pontos de vista, num perspectivismo fértil, como em Glob(AL), onde reina a imaginação livre, não-dogmática, transitando por temas tão variados quanto economia política, filosofia, sociologia, antropologia e literatura. MundoBraz dá continuidade às intervenções de “Glob(AL)”, atualizando-as com base nos avanços do processo político e social do Brasil no intervalo entre a publicação dos livros (2005 e 2009). Por conseguinte, desenvolve-se no livro de que modo os sucessos e conquistas no Brasil decorrem de uma nova concepção de trabalho e cidadania, que pode servir como exemplo para as esquerdas do mundo. É essa a centralidade mundial do Brasil em pauta: a sua singularidade como chave para o discurso e a prática dos movimentos de emancipação no contemporâneo, tão solapados alhures pelo recrudescimento da xenofobia, do racismo e do fosso social entre incluídos e excluídos do sistema econômico. Nesse sentido, MundoBraz aprofunda o livro anterior de Cocco, Mundo real: Socialismo na era pós-neoliberal, cujo objetivo declarado foi a renovação do pensamento de esquerda e das utopias socialistas.
Ao contrário de parte da literatura filosófica (pretensamente) de vanguarda, travestida ora de cabotinismo acadêmico, ora de obscuridade udigrudi, – em ambos os casos para camuflar a indesculpável carência de conteúdo e interesse prático, – o livro de Cocco ancora-se na materialidade das lutas. Essa “ancoragem”, – no sentido que lhe confere Barthes, – refere-se à força textual em entretecer teoria e prática, em simultaneamente dar vida aos conceitos e estrutura conceitual à vida. Em conseqüência, se por um lado, em MundoBraz abundam conceitos tais como devir, multiplicidade, biopolítica, multidão e precariado produtivo, por outro eles se acoplam a problemas concretos, tais como a distribuição de renda, ações afirmativas, acesso universitário, governança latino-americana e democratização cultural. Portanto, o instrumental teórico presta-se mais como caixa de ferramentas para a prática do que como totalização de uma ideologia ou visão de mundo. A prática que subjaz aos discursos e neles transpira, por sua vez, permite à teoria ultrapassar os muros e démarches para ligar-se efetivamente à organização (política) da produção. Nesse intento, assim como em Glob(AL), MundoBraz se propõe a mapear o terreno e organizar as lutas do presente.
Ao invés de uma cartilha sobre “o que fazer”,
disparar propostas em várias direções do brasilianismo,
da antropofagia à cosmologia ameríndia
A figura do mapeamento define bem a poética empregada por Cocco em MundoBraz, na sua constituição dos espaços conflitivos. Porque menos do que uma cartilha monológica sobre “O que fazer”, ao modo leninista, o caso é disparar propostas em várias direções, apresentando múltiplos caminhos e desafios, apontando para diversos tesouros do brasilianismo – que vão da antropofagia oswaldiana à cosmologia ameríndia.
A maior referência teórica de Cocco é a filosofia política de Antônio Negri. Este pensador italiano compartilha da militância com Cocco desde os movimentos da autonomia operária na Itália dos anos 1970, quando uma insurreição emergiu das fábricas, – à margem e mesmo contra sindicatos e partidos de esquerda, – e partiu para a ação direta, com “greves selvagens” que alternavam sabotagem da produção e confrontos de rua, sempre sob violenta reação do sistema policial-penal. Um movimento para proclamar que a meta do operário não é somente granjear melhores salários e condições de trabalho, mas abolir a sua própria condição de operário.
Como resultado da ebulição social dessa época, Negri chegou a ser condenado a treze anos de prisão na Itália, pena que cumpriu a partir de 1997. Defensor de vias alternativas para o capitalismo contemporâneo e de uma sociedade democrática global sem fronteiras, Antônio Negri publicou diversas obras traduzidas para o português e ficou mais conhecido pela trilogia escrita com o professor americano de literatura Michael Hardt: Império (Record, 2004), Multidão (Record, 2005) e Commonwealth (Harvard, 2009, sem tradução). De Negri, Cocco herdou a ontologia positiva de um materialismo radical, enraizado em Maquiavel, Spinoza e Marx, mas também a o estilo grandiloqüente (especialmente nos títulos) e a estruturação por assim dizer pictórica, que condensa muitos argumentos e conceitos em pequenos espaços. Reverbera assim, em MundoBraz, um otimismo contagiante, que resta claro nos arremates das teses, na síntese de aforismos, nas filiações com a antropofagia e o tropicalismo, tudo isso num tom narrativo próximo ao épico que os leitores de Império (2000) e Multidão (2004) irão reconhecer.
Trata-se de livros com uma abrangente proposta para a ação política, que pregam uma nova ordem mundial pautada por redes colaborativas transnacionais de ação direta e produção político-cultural. Um de seus principais argumentos reside na identificação da pós-modernidade como uma nova etapa do capitalismo. Chamada de sociedade pós-industrial ou pós-fordista, ela enseja uma renovada teoria de valor e um novo conceito de classe proletária. Destarte, o trabalho imaterial (serviços, informação, marketing, circulação etc) torna-se a referência determinante para as lutas e o caminho para a construção do sujeito revolucionário pós-moderno: a “multidão”. Esta se constitui do conjunto de singularidades produtivas que não se totalizam em “povo”, nem se confundem em “massa”, e tampouco se reduzem a “indivíduos” desconectados. Articulados na multidão, os “nômades” constituem os agentes singulares dessa democratização radical baseada no trabalho não-subordinado e autônomo, organizado pela autogestão, que instauram a vida mesma na produção, sempre combinada e comum de valores, afetos, bens e informações.
E é aí também, na formulação conceitual do sujeito-multidão na sociedade pós-industrial, que a ortodoxia de esquerda torce o nariz. Se Glob(AL) foi recepcionado com relativo desdém pela intelligentsia brasileira, foi menos por sua ousadia e fecundidade como ferramenta, do que pela proteção rancorosa de “reservas de mercado” na tradição política de esquerda. Esta ainda se confrange ante essa escola, não somente pela abjuração sonora ao socialismo real (um dos livros de Negri intitula-se Goodbye Mr. Socialism), mas principalmente por seu desprendimento ao tratar temas considerados anátema, tais como mídia, consumo, globalização, trabalho informal e renda universal. Se para os conservadores de esquerda, tais temas sempre significam e sustentam o capitalismo neoliberal, para Negri e Cocco não são incompossíveis com a sua visão de democracia radical, e identificam linhas de fuga em todos os referidos temas, que devem ser exploradas e fortalecidas.
Para Cocco, boa parte da esquerda brasileira anquilosa-se em empoeiradas ideologias, não renova o arsenal teórico e assim se recusa a conceber os novos sujeitos políticos e sociais. Ficam desamparados, portanto, para explicar os avanços da sociedade brasileira na última década, quanto à melhor renda, consumo, produção cultural e educação; e mesmo em aspectos macroeconômicos como o crescimento do PIB e a maior credibilidade financeira do país. É por isso que a obra de Giuseppe Cocco, – assim como a trilogia de Negri e Hardt, – soa tão herética, quando transposta para a análise da realidade brasileira. Ela se propõe a explicar o que boa parte da academia não explica.
Com efeito, um dos maiores méritos dessa abordagem heterodoxa está em passar em diagonal pela dialética entre estado e mercado. No debate do estatuto do trabalho, Giuseppe investe numa via alternativa entre as panóplias do neoliberalismo e do nacional-desenvolvimentismo. Pelo primeiro, entende-se a técnica de governo baseada na fragmentação do trabalho e na gestão econométrica do risco, que administra a insegurança dos “mercados” e acentua a desigualdade entre quem está “dentro” e quem está “fora” do sistema produtivo. Pelo segundo, as técnicas do neokeynesianismo, de raízes estatistas e industrialistas (“fordistas”), numa ortodoxia de esquerda que incensa o dito “setor produtivo de base” (industrial), o emprego formal e a aliança entre estado forte e empresários industriais, tudo em louvor ao desenvolvimento nacional. Desta vez, o antagonismo não-dialético de MundoBraz rejeita ambas as posições discursivas, aparentemente opostas, ressaltando-lhes uma cumplicidade material.
Para Cocco, emancipação social deve se traduzir em
remuneração da vida, políticas sociais, trabalho livre.
Tal postura desagrada a esquerda conservadora
Porque a posição de Cocco filia-se às correntes de pensamento que têm no trabalho não-subordinado e autônomo o fundamento da atividade produtiva. Isto significa propugnar por políticas de renda universal, radicalizar programas como a bolsa-família e universalizar o acesso à produção, distribuição e consumo de bens culturais (inclusive carreiras universitárias). O que é inaceitável tanto para o neoliberalismo, a reclamar do decorrente déficit financeiro e implosão do sistema de risco, quanto para o desenvolvimentismo, que tacha a transferência de renda de “assistencialismo” e não anota ganho duradouro à economia sem um planejamento e subsídio estatais ao “setor produtivo”. Para Cocco, na sociedade pós-industrial, não há que se bitolar mais nos slogans do desenvolvimento, do emprego formal e da soberania nacional, mas recolocar a emancipação social em termos de remuneração da vida (bio-renda), política social como cerne da política econômica, trabalho livre e governança global pelos muitos – temas detalhados em MundoBraz.
Embora diversificado, o mapa de Cocco não se furta a oferecer uma rosa-dos-ventos nítida, contornando qualquer esboço de enciclopedismo ou relativismo moderninho e sem brilho. Os vários territórios desenhados são divididos em espaços antagônicos, em que se contrapõem discursos intimamente atrelados a práticas concretas da atualidade. Esse dualismo permite ao professor da UFRJ conferir um sentido político aos conflitos que seleciona, conectando as lutas em várias regiões numa rede articulada de resistência. Um procedimento dualista, porém nada dialético: longe de sintetizar “pólos”, o autor recodifica-os, demonstra que amiúde o que se conhece por “esquerda” e “direita” coabitam a mesma agenda antidemocrática, e por fim afirma claramente o seu lugar prático-discursivo na contenda, isto é, afirma a sua diferença.
Por conseguinte, às teorias da favela-inferno, o autor opõe a comunidade dos pobres também como espaço constituinte de cultura e resistência. Aos estudos da favelização como praga urbana a erradicar-se (o “poder do crime”), que geralmente sustentam o discurso do medo e da punição permanente (o “crime do poder”), o autor salienta a veia produtiva e potente dos movimentos das periferias, na sua reinvenção de formas de vida – que o autor não hesita em promover. E o citado antagonismo teórico acede ao nível concreto da vida dos cidadãos, pois as diferenças teóricas repercutem nas políticas públicas: a aplicação cerrada e sistemática do controle policial e do extermínio versus a valorização das periferias por medidas de urbanização, moradia, acesso gratuito à internet e investimento na produção e distribuição da cultura e das artes.
Ao mesmo passo, o debate ao redor do racismo é mapeado e polarizado pelo antagonismo entre os defensores do mito da democracia racial, cuja argumentação circula ao redor da igualdade formal e da meritocracia abstrata, e aqueles que sustentam medidas reais para corrigir a aguda desigualdade social modulada pela raça. No que já é marca registrada de suas publicações, Cocco desconstrói as teses que negam a existência de raças, sob o bordão do “não somos racistas”, bem como o discurso liberal a-histórico e a sua concepção individual de preconceito – incompatíveis com uma análise materialista, perante a qual o racismo é um dispositivo social estruturante. Novamente, o autor coloca-se de modo cristalino numa agenda política atual, urdindo mais um nó da rede militante.
Em todos esses assuntos, – periferias e metrópole, questão racial e estatuto do trabalho – as referências adotadas pró ou contra os objetivos políticos do autor assumem um perspectivismo típico de Nietzsche ou Deleuze. Ou seja, a convocação de autores os faz atuar personagens de um teatro filosófico no qual, como no discurso indireto livre, o narrador fala em seu nome por meio dos outros. Dialogicamente, narrador e personagens estimulam-se, na combinação (bom encontro) ou não (encontro ruim) de seus desejos, na formulação comum dos antagonismos políticos, numa polifonia à Bakhtin. Se, de um lado, o ímpeto aglutinador da exposição pode parecer autoritário, por instrumentalizar as citações para o projeto político/sistema conceitual do autor, de outro condiz com a concepção de produção em rede, na medida de sua abertura a pensadores tão diversos quanto Oswald de Andrade, Roberto Schwarz, Euclides da Cunha e Viveiros de Castro, dentre outros. Com efeito, em MundoBraz a apropriação torna-se aberta e multitudinária, visto que as inter-relações conceituais operam nos dois sentidos, como sésamo para novos territórios e lutas. E assim, ao invés de reafirmar narcisicamente a identidade do autor, elas conseguem manifestar a sua diferença. Ou seja, o autor-narrador se reinventa sucessivamente ao deixar trespassar-se pelo pensamento dos outros, com quem compartilha de afinidades eletivas.
Nos teóricos do “estado de sítio”, MundoBraz enxerga geração intelectual mortiça, para quem qualquer resistência
finda recodificada e invariavelmente anulada
Enquanto em Glob(AL) o principal eixo antagônico descortinava-se no diagnóstico/desmonte do nacional-desenvolvimentismo e dos mitos da igualdade racial, – tão presentes em esquerdas menos inovadoras, – MundoBraz polemiza diretamente contra uma nova e sofisticada estratégia discursiva. Trata-se da utilização, por uma parcela da esquerda intelectualizada, da ontologia negativa de Giorgio Agamben, filósofo cuja significativa penetração no meio intelectual consolidou-se com os livros Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (1995) e Estado de exceção (2003). Este autor popularizou-se com a sua tese sobre como, na atualidade, o estado de exceção tornou-se permanente e os dispositivos de controle difundiram-se pervasivamente sobre todos os aspectos da vida.
Em vários níveis de uma análise inegavelmente de fôlego (filosofia da linguagem, direito, literatura, política, teologia), esgueirando-se em meio a cipoal de referências (Kafka, Primo Levi, Walter Benjamin, Carl Schmitt, Paulo de Tarso), Agamben interpreta a sociedade contemporânea como a culminação de um longo processo hermenêutico de captura da vida, originado no berço da metafísica ocidental. Essa captura desnuda a vida progressivamente de qualificações políticas e inviabiliza a mudança e a resistência coletivas. Vive-se assim o eclipse da política e o fim da história, numa espécie de “morte de Deus” nietzschiana ou “clara noite do nada” heideggeriana. Para esse filósofo, na mais pessimista reflexão de sua obra tenebrosa, todo esse rolo compressor ontológico-político se realiza finalmente na tanatopolítica. É ela quem, modelada pelo campo de concentração, termina por reduzir-nos à vida nua, isto é, matável e insacrificável, exposta à violência sumária pelo poder soberano.
Pelo menos na academia brasileira, as zonas de sombra projetadas por Agamben aguçaram o spleen de uma geração intelectual mortiça, para quem tudo está perdido. Fortaleceu-se o argumento de que, na pós-modernidade capitalista, qualquer forma de resistência finda recodificada e invariavelmente anulada. Que a revolução nunca esteve tão distante, devido ao triunfo do neoliberalismo, da globalização predatória, da dissolução do sujeito político e da emasculação das lutas de esquerda. MundoBraz enfrenta-os ao polemizar nominalmente com a coleção “Estado de Sítio” (editora Boitempo), coordenada pelo uspeano Paulo Arantes e parcialmente inspirada pela obra agambeniana.
Cocco explica como a sofisticação dos argumentos encobre o fracasso dos projetos da ortodoxia socialista, cada vez mais melancólica, imersa numa atmosfera decadentista. Diante da redução das desigualdades, de transformações democráticas na política e da melhoria de todos os indicadores sociais, – realizações à revelia dos receituários de suas ideologias, – essa esquerda refugia-se na ontologia negativa, que tem em Heidegger a referência mais central. Em MundoBraz, o autor não somente ressalta a incompatibilidade formal da filosofia de Agamben com o nacional-desenvolvimentismo dessa mesma esquerda, mas também sublinha a esterilidade política e o imobilismo prático associados a conclusões apocalípticas sobre o fim da história como vitória do “anticristo” neoliberal. Tais pensadores aferraram-se à lógica do “quanto pior, melhor” e assim, como avestruzes contrariados, enfiaram as cabeças pensantes em buracos escuros do pessimismo filosófico.
Em atitude diametralmente contrária à paralisia, Cocco avança sobre terreno até então intocado em seus livros, ao resgatar a cosmologia ameríndia e a antropofagia andradiana. A primeira força é invocada pelo prisma da antropologia de Eduardo Viveiros de Castro e sua abordagem pós-estruturalista – bastante influenciada, aliás, pela filosofia de Deleuze. Após anos de interações e ambivalências junto de comunidades indígenas, Viveiros de Castro lhes identificou um perspectivismo radical – mais vital e impactante do que o seu equivalente ocidental nas filosofias da diferença. Esse perspectivismo – que o antropólogo crê denominador comum dos povos ameríndios como um todo – dissipa as divisórias entre humano e animal e desse modo embaralha referentes canônicos das ciências humanas e naturais. Cocco por sua vez apropria-se de Viveiros de Castro para a sub-trama mais arriscada e abstrata – e talvez menos rigorosa – de sua obra multifacetada. Trata-se de investir o perspectivismo ameríndio na desconstrução das dicotomias fundantes do pensamento ocidental: humano/não-humano (“máquina antropológica”), sujeito/objeto, cultura/natureza. Se a tarefa monumental não caberia no reduzido volume, pelo menos lampeja sobre as implicações ontológicas de um pensamento tão dissimilar ao nosso.
Por outro lado, seguindo a linha de Viveiros de Castro, “MundoBraz” abraça o mentor do modernismo literário brasileiro. Se para o citado antropólogo o perspectivismo ameríndio revigora a antropofagia em outros termos, como deglutição cultural do europeu colonizador, para Giuseppe dá respaldo à hibridização e à implosão de identidades engessadas. De fato, a beleza e a potência do manifesto antropofágico residem na sua dupla esquiva: seja da subjugação pela cultura branca “elevada” importada da Europa, seja de uma identidade nacional calcada sobre os mitos do indianismo, da democracia racial e das raízes tropicais.
Junto da Geração de 1922, Oswald foi tanto anticolonial quanto antinacionalista, contrapondo-se aos vendilhões europeizados e aos nativistas do movimento integralista. O que não significa ignorar o estrangeiro e o nacional, mas devorá-los indiscriminadamente e degluti-los para a criação de uma cultura híbrida e mestiça, simultaneamente local e global. Se iniciou a trajetória como escritor pequeno-burguês, embora insubmisso, libertário e extemporâneo, Oswald logo descobriu – no bom encontro com Pagu – que “o contrário do burguês não é o boêmio”, mas o militante materialista – transformação ética narrada nos romances da “Trilogia do Exílio” (1922, 27, 34). O seu satírico e expressivo “O Rei da Vela” (1937), na célebre montagem do Teatro Oficina de Zé Celso Martinez, tornou-se literalmente a peça de resistência dos tropicalistas, em 1967.
E é aí que o nomadismo de Deleuze, Negri e Cocco sintoniza-se com a arte libertadora e profundamente democrática que nasce com os modernistas, retumba pelo tropicalismo e ressurge no século 21, com a produção cultural das periferias, a expressão da Amazônia indigenista, a múltipla comunicação e colaboração da Internet, as redes de coletivos e movimentos minoritários que, no conjunto, ganham enorme dimensão política. Fica claro, em MundoBraz, que o devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil não devem ser entendidos (simplesmente) como a ascensão midiática, econômica ou geopolítica do país. Nem decerto como boutade publicitária do autor. O recente foco sobre o Brasil – futura sede da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016 – é mais efeito de superfície do que a essência de um fenômeno molecular.
Este se enraíza na aparição de novos atores político-culturais, articulados numa rede colaborativa, difusa e livre, que luta em comum por renda, liberdade e acesso aos direitos. Se por “devir” se entende um conceito de renascimento, o devir-Brasil renova no mundo um cadinho de elementos potentes, que vão da fome ontológica dos ameríndios aos pontos cantados de Iansã – deusa guerreira dos ventos da mudança. Nas suas páginas, MundoBraz invoca essa mesma força sincrética e transformadora, ao devorar o inimigo, varrer o pó de discursos encarquilhados e arejar o corpo e a mente de quem procura por mapas e caminhos para a ação política na pós-modernidade.
Bruno Cava, engenheiro e estudante de direito, participa da Universidade Nômade. Mantém o blog Quadrado dos Loucos (Literatura, jazz, xadrez, quadrinhos e crítica), atualizado quase diariamente. Edita a revista Enxame.
Túlio Tavares (site) é artista plástico (desenhos, pinturas, vídeos e fotos) residente em São Paulo. Participa de intervenções urbanas, performances, manipulações da mídia, projetos curatoriais e mostras de arte.
MAIS:
> MundoBraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo
(Giuseppe Cocco, 2009, ed. Record, 304 pág.)
Disponível, pela internet, na Livraria Cultura (R$ 42)
> Referências da resenha (só as diretamente citadas):
Agamben, Giorgio
“Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I.”, Belo Horizonte: 2004 [1995], UFMG.
“Estado de exceção”, Rio de Janeiro: 2004 [2003], Boitempo.
Andrade, Oswald de
“Os Condenados. A Trilogia do Exílio”, Rio de Janeiro: 2000 [1922, 27,34] , Globo.
“O Rei da Vela”, Rio de Janeiro: 2000 [1937], Globo.
Castro, Viveiros de
“A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia” , São Paulo: 2002, Cosac Naify.
“Eduardo Viveiros de Castro”, coleção de entrevistas organizadas por Renato Sztutman, Rio de Janeiro: 2009, Beco do Azougue (Coleção Encontros).
Cocco, Giuseppe
“MundoBraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo”, Rio de Janeiro: 2009, Record.
“O Mundo Real: Socialismo na era pós-neoliberal”, São Paulo: 2008, LP&M.
“Glob(AL). Biopoder e lutas em uma América Latina Globalizada”, c/Antônio Negri, Rio de Janeiro: 2005, Record.
Negri, Antonio & Hardt, Michael:
“Império”, Rio de Janeiro: 2005 [2000], Record.
“Multidão. Guerra e democracia na era do império.”, Rio de Janeiro: 2005 [2004], Record.
“Commonwealth”, Cambridge: 2009, Harvard Un. Press.
Wednesday, February 17, 2010
''MundoBraz'': a brasilianização do mundo. Entrevista especial IHU On-Line com Giuseppe Cocco
Pensar o mundo a partir do Brasil. Pensar o mundo e suas complexidades a partir de um "ator fundamental" como o Brasil. Esse foi o desafio que o cientista político e doutor em história social assumiu ao escrever seu novo livro "MundoBraz: O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo".
Confira a entrevista.
"A 'brasilianização' é o devir-Brasil do mundo: o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem, de radicalização democrática", afirma o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nesta entrevista especial concedida por telefone à IHU On-Line.
Analisando aspectos centrais do papel do Brasil no cenário mundial, Cocco afirma que é preciso "desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não respeita os direitos dos índios, dos quilombolas, dos pobres e que não reconhece a urgência da luta ao racismo".
Por outro lado, o Brasil é uma peça chave para a compreensão dos demais problemas e soluções existentes no mundo, no âmbito político-social. "O Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa", defende. "Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano – atualizado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro – do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro", resume o cientista político.
Giuseppe Cocco possui graduação em ciências políticas pela Universite de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em ciências tecnológicas e sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Doutor em história social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne), atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou com Antonio Negri o livro "GlobAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada" (Ed. Record, 2005).
Cocco estará presente na Unisinos para o XI Simpósio Internacional IHU: "O (des)governo biopolítico da vida humana", nos dias 13 a 16 de setembro deste ano.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que quer dizer o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo?
Giuseppe Cocco – Coloquei esse subtítulo ao meu livro para dar mais força ao título "MundoBraz”. Com efeito, MundoBraz é como que uma brincadeira com relação ao sufixo "bras" que, em geral, é aplicado às empresas “brasileiras”. Aplicado ao mundo, ele se torna um oxímoro, um paradoxo para tentar dizer o que caracteriza a globalização quando a pensamos a partir do Brasil e quando pensamos o Brasil a partir da globalização. Estamos falando, na realidade, de uma nova relação entre o Brasil e o mundo, e entre o mundo e o Brasil. Isso se deve, por um lado, à importância crescente que o Brasil desempenha no âmbito dos esforços de definição dos contextos de governanças democráticas da globalização e ao fato, por outro lado, de que esses esforços passam cada vez mais por reações Sul-Sul, das quais o Brasil é um ator fundamental.
"Devir-Brasil do mundo: o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem"
Portanto, um devir-Brasil do mundo é um devir-Sul do mundo, que não implica em um deslocamento do Norte para o Sul, mas sim uma ultrapassagem da clivagem Norte e Sul. Trata-se da ultrapassagem das relações de dominação típicas da divisão do mundo em blocos imperialistas. Essa clivagem foi deslocada não porque desapareceu, mas porque, hoje em dia, podemos dizer que há algo em comum nos movimentos sociais e de resistência do mundo todo: no devir-mundo do Brasil encontranos a constituição de uma nova subjetividade, de novas lutas, de um novo tipo de sujeito de "classe", que poderíamos chamar de "a multidão dos pobres"..
IHU On-Line – Em que aspectos o mundo está se "brasilianizando"? Neste sentido, porque é importante "desinventar" o Brasil?
Giuseppe Cocco – A brasilianização do mundo foi um tema muito importante na década de 90, em toda uma literatura crítica da globalização neoliberal e suas consequências nos países centrais, que tinham um forte sistema de proteção social, e que a globalização neoliberal vinha destruindo. Seja na teoria social, econômica ou na filosofia política, vários autores usaram a brasilianização como uma metáfora negativa. O Brasil ia se tornando um pesadelo para aquelas sociedades que tinham um pacto social avançado, com altos salários, sindicatos fortes, proteção social abrangente, que passavam por um processo de fragmentação social e por uma crise civil com o aumento da violência e da exclusão social. Tudo isso era chamado de brasilianização. Para o Brasil, a “brasilianização” se tornou um pesadelo ainda maior. A perspectiva de desenvolvimento, o fato de o Brasil ser, segundo o discurso nacional-desenvolvimentista, o país do futuro, que iria se industrializar, passar da periferia para o centro, através do processo de industrialização com a "brasilianização" ia por agua abaixo. A própria modernização trazida pela globalização, ao invés de diminuir a exclusão, distribuir riquezas e sistemas de proteção, vai aumentar a exclusão (fragmentar o emprego, precarizar o trabalho), privatizar os serviços e criar ainda mais problemas em termos de dinâmica e justiça social..
A proposta em termos de devir-Brasil do mundo é dizer que há uma brasilianização (essa metáfora pode ser, sim, utilizada), mas que há outro lado muito potente do Brasil, o devir-Sul do mundo. Deste devir, o Brasil é o protagonista, não como Estado-nação desenvolvimentista, mas como Brasil dos pobres, desinventado: desinventado porque o devir-Brasil do mundo é necessariamente e ao mesmo tempo um devir-mundo do Brasil. Quando falamos dos pobres, falamos de sujeitos atravessados por questões sociais de classe e também por questões culturais, de raça, de luta contra o racismo e a desigualdade, de reservas indígenas e tudo mais.
"É preciso desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental, que não reconhece a problemática do racismo"
Esse outro lado da "brasilianização" é o devir-Brasil do mundo, em que o país está, efetivamente, na frente, pois está em outro lugar em termos de políticas dos pobres, políticas sociais, de mestiçagem, de um governo que teve, nos últimos oito anos, uma experiência inovadora, extremamente interessante, de radicalização democrática, como nas políticas culturais, nas políticas de ação afirmativa (no Prouni), na distirbuição de renda e na demarcação das reservas indigenas (como no caso da Raposa Serra do Sol). Esse outro lado implica no fato, como propõe Viveiros de Castro, de desinventar o Brasil: o Brasil nacionalista, da homologação da cidadania sob a figura unívoca da modernidade ocidental e do emprego industrial, que não respeita os direitos dos índios, dos quilombolas e que não reconhece a urgência da luta ao racismo.
IHU On-Line – No lugar do desenvolvimento econômico, você enfatiza uma espécie de desenvolvimento antropológico, situando o Brasil no centro do mundo. Como a nossa cultura influencia as outras culturas do mundo?
Giuseppe Cocco – Quando pensamos o desenvolvimento econômico, temos dois elementos, depois pontos de vista para relativizar esse conceito. O Brasil possui esses dois pontos de vista certamente potentes. Em primeiro lugar, porque o Brasil teve uma taxa de desenvolvimento econômico, em termos de desenvolvimento do PIB, entre as mais elevadas do mundo pós-guerra do século passado, mas com isso, ao mesmo tempo, o país se tornou o campeão mundial da desigualdade. Ou seja, o Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa. Ao contrário, pode ser uma máquina monstruosa de amplificação da desigualdade, da injustiça e da violência civil, que diz respeito às populações pobres. Em segundo lugar, porque a "performance" do Brasil diante da crise financeira global vem da pujança de suas políticas sociais e isso permite, na dureza da herança do desenvolvimeto desigual, pensar as alternativas à crise da própria noção de desenvolvimento.
O primeiro elemento enfatiza que a noção de desenvolvimento está em crise, e o segundo elemento afirma que, hoje em dia, a noção de desenvolvimento está em crise no mundo todo, a partir da crise mundial, que se declarou inicialmente nos pontos mais avançados do capitalismo global cognitivo, nos Estados Unidos, por exemplo, com a crise do subprime. Uma crise do próprio conceito de desenvolvimento econômico, seja quando pensamos nesse mecanismo da financeirização, seja quando pensamos nas questões do meio ambiente.
Em termos gerais, o capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados ao conhecimento e que, ao mesmo tempo, produz mais do que objetos formas de vida . Esse capitalismo produz formas de vida por meio de formas de vida, o que quer dizer que é uma produção do homem por meio do homem. Por isso podemos falar de modelo antropogenético. Portanto, se esse capitalismo é produtor do homem por meio do homem, a problemática antropológica se torna, imediatamente, social, econômica e política.
"No devir-mundo do Brasil encontranos a constituição de uma nova subjetividade, de novas lutas, de um novo tipo de sujeito de classe, que poderíamos chamar de 'a multidão dos pobres'"
Nesse sentido, isso possibilita julgar por ecúmeno todos os temas que dizem respeito à monstruosidade, para o bem ou para o mal, que caracterizam a dinâmica brasileira, que são a mistura e a mestiçagem generalizadas e ao mesmo tempo a exclusão, o racismo, a desigualdade e as práticas predatórias do agronegócio contra as Reservas Indigenas e contra Amazônia. No Brasil encontramos tudo, tudo o que há de pior e de melhor. Nesse sentido, o Brasil pode ser um monstro, um monstro bom ou mau, dependendo da capacidade de produção ética que tivermos. E nós acreditamos que essa produção ética, esse devir-Brasil do mundo, eestá do lado de uma política dos pobres.
Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para ser tornar o outro. Portanto, não é a cultura ou o patrimônio ou a raiz: para os índios, muito pelo contrário, a cultura é uma relação. Temos toda a antropologia de Viveiros de Castro, com aportes importantes para pensarmos isso.
IHU On-Line – Em seu livro, como podemos entender os conceitos de biopoder e biopolítica?
Giuseppe Cocco – Eu uso esses conceitos juntamente com Negri e Judith Revel, a partir de [Michel] Foucault. Grosso modo, Foucault definia a biopolítica e o biopoder (não fazia muita distinção entre eles) como uma nova tecnologia de poder: segundo ele, as tecnologias de poder se diferenciavam e ao mesmo tempo, se sobrepunham entre elas. Ele falava de três grandes formas de poder, A primeira é a tecnologia, arcaica, é aquela do poder soberano, que era um poder de vida e morte. Foucault sintetizava dizendo que era uma tecnologia organizada em torno da possibilidade de fazer morrer e deixar viver. A população se virava, mas tinha que respeitar determinados limites. Caso os desrespeitasse, sofria de punição soberana, vista como divina.
A segunda tecnologia é a disciplinar, que se aplicava ao corpo dos indivíduos domesticados dentro das organizações funcionalistas, modernas e industriais. O paradigma era a prisão e a fábrica. A disciplina é fundamentalmente totalizadora e organiza todo o tempo e todo o espaço. Toda a cidade era assim organizada de maneira funcionalista: bairros dormitórios, industriais, de negócios e de lazer. O tempo de vida era funcionalizado: tempo da escola, de serviço militar, de fábrica e de aposentadoria. E para quem desviasse: prisão e hospitais, inclusive psiquiátricos, concluiam o desenho. Essa é a sociedade disciplinar, que vai moldando o corpo dos indivíduos dentro do maquinismo industrial e de suas instituições concentracionárias, sabendo que, por trás da fábrica e da prisão, temos os campos de concentração, os campos de trabalho, inicialemente experimentado pelso europeus nas colónias.
A terceira forma, que se sobrepõe a essas, é a do biopoder e diz respeito à população entendida como meio ambiente. É preciso, mais do que determinar regras disciplinares ou leis punitivas, estabelecer critérios de probabilidade, de tolerabilidade social e de interação, sobre os quais se deve intervir para modular o que acontece na população. O exemplo mais clássico disso é a evolução das políticas de repressão da criminalidade, em que o problema não é reprimir todo e qualquer crime, mas manter um determinado tipo de crime dentro de um determinado nível aceitável social e estatisticamente.
"O Brasil é o país para se pensar no fato de que o desenvolvimento, enquanto crescimento do PIB, não significa em si muita coisa"
Outro exemplo é a vacina, que inverte no princípio: não se combate o vírus ou a bactéria dentro do corpo de cada indivíduo para curá-lo. Busca-se inocular a bactéria, com determinados critérios, em toda a população, fazendo um combate preventivo. O biopoder é um poder que investe na vida como um todo, entendendo a vida da população como meio ambiente.
No Brasil, as noções de biopoder e a biopolitica são particularmente adequadas para que possamos fazer a distinção de poder sobre a vida e de potência da vida. Na vacina que foi usada, por exemplo, para fazer uma política de remoção das populações que moram em "cabeças de porco" no centro do Rio de Janeiro em nome dos problemas de higiene, temos o poder, que usa essa sua dimensão "bios" para discriminar os pobres. Mas, como não enxergar também uma biopolítica, ou seja a emergência de uma política que tem como base as lutas e a resistência dos pobres, ou seja a potência da vida dos pobres.
É o que acontece agora no debate sobre as áreas de risco, nas encostas, por causa da chuva. Por um lado há uma política necessária para avaliar o risco com relação à possibilidade de desabamentos e desmoronamentos, e portanto evitar as mortes pela dimensão biopolítica. Por outro lado, há o uso da problemática do risco em termos de biopoder, para reintroduzir a questão da remoção das favelas, para renovar o poder sobre a vida dos pobres.
O Brasil, desse ponto de vista, é um território que fica no centro desse deslocamento, primeiro porque aqui encontramos de maneira nitidas as três tecnologias de poder: arcaíco (quando a polícia soberana entra numa favela com o direito de matar); disciplinar, quando os operários do ABC paulista entram no chão de fábrica; de segurança (biopoder) quando se desenvolvem políticas de regulação do risco. Na regulação dos pobres há o poder arcaico e, ao mesmo tempo, acontece esse deslocamento de um poder que, mais do que se organizar como poder de fazer morrer e deixar viver, se organiza sobre o poder de fazer viver e deixar morrer. Porém, nisso temos uma dinâmica demográfica, de reprodução dos pobres por mestiçagem e por migração (favelização) que é completamente biopolítica, é uma potência da população. Por isso, o Brasil é o contexto no qual as temáticas do biopoder e da biopolítica são fundamentais, e é por isso, aliás, que quando Negri e eu escrevemos o livro "GlobAL", enfatizamos no título a relação entre biopoder e lutas biopolíticas.
IHU On-Line – Quais são as experiências que o senhor aponta de radicalização da democracia em nosso país e também no continente? Como o senhor interpreta o conceito da sociedade de controle?
Giuseppe Cocco – A sociedade de controle, noção proposta por Deleuze, diz respeito ao fato do poder se tornar mais uma gestão dos fluxos do que uma tentativa de dizer o que está fora e o que está dentro. O poder nessa "sociedade" se difunde como um gaz e fica dentro de nossas cabeças. Nós mesmos somos o sujeito do poder. Digamos que a sociedade de controle é um termo muito parecido com o que Foucault chama de sociedade de segurança, sociedade do risco e da probabilidade, que é um dos modos fundamentais da governamentalidade e de como funciona o biopoder.
"O capitalismo que está em crise é o cognitivo, cujos elementos de valor estão ligados ao conhecimento e que produz mais do que objetos: produz formas de vida"
Quanto à radicalização democrática podemos dizer que, na América do Sul, esse processo diz respeito às experiências dos novos governos, que são todos diferentes. Porém, ao mesmo tempo, todos indicavam, em primeiro lugar, um esgotamento definitivo do projeto neoliberal, antecipando o que a crise do subprime declarou definitivamente, e, em segundo lugar, colocavam em todos os países latino-americanos novas prioridades.
Em conjunto, essas novas prioridades não se definem como a aplicação de um modelo, significando que o que acontece na América do Sul não é a hegemonia de um modelo socialista ou operário. É só pensar na riqueza e na diversidade das dinâmicas indígenas na Bolívia, nos processos constituintes na Bolivia e na Venezuela, nas experiências que dizem respeito as relações entre movimentos e governo no Brasil etc. Em todas essas experiências, às quais podemos juntar também aquelas Argentina, equatoriana e paraguaya, temos uma multiplicidade de sujeitos, linhas de mudanças e – ao mesmo tempo – a ausência de um modelo de referência. No caso do Brasil, apesar das contradições internas ao próprio governo, temos experiências inovadoras e riquissimas, em particular com a política dos pontos de cultura: uma política de radicalização democrática, pois reconhece as dinâmicas de produção cultural que já existem e revela a articulação entre a produção cultural e os movimentos.
Mas, para apreender as dimensões reais da radicalizacão democrática no governo Lula precisamos fazer a conexão com as políticas de distribuição de renda, como o programa bolsa-família. Ele foi se desenvolvendo a partir de uma política social de tipo neoliberal, condicionada e fragmentada, mas o governo foi massificando e valorizando (mesmo que timidamente). O resultado inesperado é que os pobres passaram a ter uma postura política diferente, mais autônoma. Se juntarmos bolsa-família e pontos de cultura, quer dizer o bolsa-família que tem uma dinâmica quantitativa consistente, embora moderada, e os pontos de cultura que tem uma dinâmica qualitativamente adequada aos movimentos de resistência e produção, estamos numa perspectiva só, aquela de um novo tipo de políticas públicas de constituição do comum. Algo que toma ainda mais força se a isso juntamos as políticas de demarcação continua das reservas indigenas.
IHU On-Line – Em um país marcado culturalmente pela antropofagia, como o senhor analisa fenômenos como o racismo e a mestiçagem no nosso Brasil contemporâneo?
Giuseppe Cocco – Esse é um dos debates mais importantes. O debate sobre o racismo no Brasil contém o que há de pior e de melhor no mundo, além de ser o terreno de aplicação mais forte da proposta em termos de "MundoBraz". Diante das propostas de políticas de ação afirmativa, de políticas que reconhecem a dimensão de cor da desigualdade dize-se que o Brasil não é um país racista, porque é o país da mestiçagem.
"Na relação do Brasil com o mundo, podemos ver relações antropofágicas, no sentido oswaldiano do termo. É uma relação radical com o outro: comer o outro para devir, alterar-se"
Isso é dito de duas maneiras bastante cínicas. O primeiro discurso, mais simplório, é de que no Brasil existe uma harmonia entre as raças. O segundo discurso, ligado ao primeiro, é só um pouco mais sofisticado e afirma que, mesmo que exista alguma discriminação, não é possível qualificá-la, à medida que ninguém no Brasil sabe quem é índio, negro ou branco. Este discurso faz um uso instrumental da sociologia e antropologia heroica dos anos 30 no Brasil, aquela que “resolveu” o quebra-cabeça das raças no momento da construção de uma ideia de povo para o estado nação moderno. Esse tipo de discurso, que é muito midiatizado, parece obrigar os movimentos que defendem ações afirmativas, que visam uma política antirracista no país, a se transformarem em movimentos que negam a riqueza mestiçagem, a tornar-se movimentos identitários.
Acho que, quando tomamos toda a problemática da antropofagia, seja em termos antropológicos, como faz Viveiros de Castro ao reconstruir o papel cultural e político da antropofagia nas sociedades tupinambás, seja nos termos do modernismo revolucionário e comunista de Oswald de Andrade, a antropofagia aparece como a qualificação de um discurso sobre miscigenação que não deixa nenhuma dúvida com relação ao uso instrumental, que foi feito na ideologia de casa grande e senzala.
Oswald fala de Canudos, por exemplo. Canudos é a referência dessa mestiçagem potente que Euclides da Cunha descobriu acompanhando a guerra que descreveu em "Os Sertões". Ele fala de Canudos como uma capital jagunça, mais precisamente, ele fala da Stalingrado jagunça. Fala da miscigenação não como um terreno de conciliação entre a casa grande e a senzala, onde a sociedade transformaria essa relação de biopoder entre o senhor e a escrava como uma ideologia de harmonia racial, mas ao contrário, em transformar a relação entre casa grande e senzala em uma relação, sim, de miscigenação, mas que depende da luta e da resistência: e nesse sentido biopolítica O verdadeiro desafio é entre aqueles que querem usar a ideologia da mestiçagem e da harmonia racial para afirmar a existência de um povo homogêneo e "cinza" que serve a manter as atuais iniquas relações de racismo e desigualdade, e a discussão da mestiçagem como continuidade do processo de caldeamento, como um arco-íris de cores. As políticas públicas de açnao afirmativa (as cotas nas universidades, por exemplo) levam em conta que esse devir da mestiçagem implica que encontremos todas as cores em todos os lugares.
IHU On-Line – Em que aspectos sua ideia de universalização do Brasil é tributária a Claude Lévi-Strauss, Gilberto Freyre e Eduardo Viveiros de Castro?
Giuseppe Cocco – No que diz respeito a Gilberto Freyre e também a Oswald de Andrade, estamos falando da sociologia, antropologia, literatura e da política do Brasil nos 20 anos da transição da República Velha para a Nova. Falamos também do esforço gigantesco do Brasil para "resolver" o quebra-cabeça construído pela própria herança da escravidão em um país que sempre foi pós-colonial, pois a dinâmica brasileira logo se tornou mais importante do que a da metrópole portuguesa, e por essa razão tinha uma dinâmica de colonização que não era apenas exógena – Portugal sobre o Brasil –, mas também endógena, como uma dinâmica brasileira.
"O lugar da utopia é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori. A nova utopia é uma desutopia: o próprio processo de construção do horizonte aberto dos possíveis"
Freyre e Andrade são como que os "heróis" dessa solução do enigma, cuja dimensão universal vem muito da capacidade que eles tiveram de olhar o Brasil a partir do exterior. Gilberto Freyre a partir dos Estados Unidos – e foi lá que ele teve a intuição de que o Brasil funcionava diferentemente – e Oswald a partir de Paris. Esse fato descoberto por eles – a especificidade brasileira indo para fora do país – é bem interessante se a colocamos em relação ao discurso que fazíamos sobre a necessidade de jogar o Brasil para o centro do mundo e desinventá-lo.
É aí que temos a riqueza da proposta de Viveiros de Castro, que recupera e sistematiza a cosmologia e o animismo dos ameríndios no Brasil. Ele recupera o perspectivismo, essa ideia de que a cultura é uma troca de trocas de pontos de vista. Viveiros de Castro, um dos antropólogos mais importantes do mundo contemporâneo, recupera o perspectivismo ameríndio, trabalhando e aprofundando o trabalho pioneiro de Lévi-Strauss. Ele foi capaz de renovar a experiência de Gilberto Freyre e Oswald, dizendo "sair do Brasil para pensar o Brasil", sendo que a saída do Brasil que ele opera não é geográfica, mas sim cultural. Ele procura o ponto de vista dos índios, e para eles o Brasil é o colonizador.
IHU On-Line – Nesse cenário do "MundoBraz", qual é o lugar da utopia e da política?
Giuseppe Cocco – O lugar da utopia, podemos dizer, é o lugar da desutopia. Significa não ter mais um modelo abstrato, que existe a priori, mas pensar o modelo que se produz nas próprias dinâmicas de luta. A nova utopia é uma desutopia. É a afirmação de que precisamos de uma nova grande narrativa, como a ameríndia, por exemplo, antropofágica e que ao mesmo tempo aplique e determine o novo modelo. Já a política está em todo lugar, inclusive na floresta.
IHU On-Line – Em que aspectos sua obra dialoga com os aportes teóricos de Negri e Hardt?
Giuseppe Cocco – Em tudo. O "MundoBraz" é um aprofundamento do que eu tinha desenvolvido junto a Negri no livro "GlobAL". Naquele livro, criticamos completamente a clivagem Norte-Sul e afirmamos que os temas da globalização que atravessam o Norte do mundo são os mesmo que atravessam o Sul. O "MundoBraz" é um aprofundamento dessa questão, mas com essa textura antropológica, que ao meu ver é fundamental. O diálogo interno é total. A tentativa de "MundoBraz" é antropofágica, seja no sentido do que Negri e a escola negriana desenvolvem, seja no sentido de Viveiros de Castro e a antropologia imanentista. É a tentativa de fazer uma mestiçagem entre os dois.
(Reportagem de Moisés Sbardelotto e Márcia Junges)
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=29146
Friday, December 11, 2009
Que os pobres louvem os pobres
GIUSEPPE COCCO
Os governos Lula fizeram uma política dos pobres, e é ela que constitui o quebra-cabeça sem solução para a oposição
PELA PRIMEIRA vez a economia brasileira não foi abalada pelo choque exógeno. Outra grande inovação: o Brasil se tornou um ponto de referência -ao mesmo tempo- do processo constituinte que atravessa a América do Sul e dos esforços de democratização da governança mundial da globalização. Como nas economias centrais (mas sem precisar mobilizar o mesmo volume de recursos), o governo Lula interveio para restaurar o crédito e subsidiar a produção industrial. Mas a verdadeira novidade é que as políticas sociais são hoje o motor da retomada do crescimento.
Um numero crescente de estudos já indicava que as transferências de renda (em particular o programa Bolsa Família) contribuíam para a redução sem precedentes da desigualdade de renda e para a pujança do consumo dos pobres (que as estatísticas chamam de "classes D e E").
Pesquisa do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) revelou a existência de um potente coeficiente multiplicador: o aumento de R$ 1,8 bilhão do Bolsa Família (em 2005 e 2006) provocou um crescimento adicional do PIB de R$ 43,1 bilhões. A transferência de renda não apenas reduz a desigualdade mas também mobiliza o trabalho (cria riqueza).
Lembremos agora as duas grandes críticas ao primeiro governo Lula. A dogmática neoliberal gritava pelas "portas de saída", contra transferências de renda desfocadas e assistenciais. A doxa desenvolvimentista esnobava a "esmola" e gritava pela mudança radical de política econômica.
São dois fundamentalismos -opostos entre eles- que criticam o governo Lula em nome de uma mesma fé na moeda: "In God we trust" está gravado nas notas do dólar, "Deus seja louvado" naquelas do real. Para uns, o mercado é Deus, com suas taxas de juros (e lucro). Para outros, Deus é o Estado e suas taxas de crescimento (industrial) e pleno emprego.
Nos dois casos, o critério de justiça é transcendental: o dinheiro é divinizado. Nele, o valor assume uma existência soberana. A vida vai depender do dinheiro, e não o dinheiro da vida.
Claro, as duas justiças não são equivalentes: a religião do mercado não distingue entre ganhos financeiros e lucros industriais -para seus sacerdotes, Lula é o diabo que inferniza o paraíso terrestre dos ricos. A dogmática do Estado afirma a necessária inclusão dos pobres pelo emprego industrial. No segundo caso, chega-se até a indignar-se diante da miséria.
Não por acaso, os desenvolvimentistas constituem vertente importante do governo. O problema é que eles enxergam Lula como um anjo que, descendo à Terra, deveria aplicar a justiça: decretar a baixa das taxas de juros para o crescimento econômico criar empregos e riqueza.
Só que a economia real comuta as duas razões transcendentais: as taxas de juros podem ser substituídas por aquelas da inflação, e vice-versa. A fé no poder abstrato da moeda não nos diz nada das relações de força que significam quanto ela "vale", quer dizer, da moeda enquanto relação social.
O horizonte de outra política depende, pois, da ruptura dessa comutação, quer dizer, de quanto a mobilização democrática é capaz de manter a moeda dentro de seu sistema de significação sem deixar que seja arrastada do lado da fé e da transcendência.
Essa ruptura não depende da aplicação de um critério abstrato de justiça, mas da produção de uma outra justiça: não mais o valor do soberano (seja ele o mercado ou o Estado), mas aquele dos pobres: dos muitos enquanto muitos.
Foi a política social que permitiu fazer a necessária (e ainda moderada) inflexão na política econômica (o PAC e a amplificação dos outros investimentos sociais de educação e saúde) sem que a chantagem da inflação se reconstituísse. Não se trata nem de macro nem de microeconomia, mas da mobilização democrática e produtiva da multidão dos pobres.
Os governos Lula fizeram uma política dos pobres, e é ela que constitui o quebra-cabeça sem solução para uma oposição estonteantemente incapaz de inovação.
A política dos pobres torna obsoletas as equações econômicas: o 0,8% do PIB (em transferências de renda: Bolsa Família e Beneficio de Prestação Continuada) é muito mais potente do que os 6% gastos em juros da dívida pública. A justiça não depende mais de um anjo que desça do céu, mas da metamorfose de todos os homens em anjos. Nas notas do real poderemos escrever: "Que os pobres louvem os pobres".
Nas eleições de 2010, será necessário dar mais um passo na direção que leva do 0,8% ao 6%, quer dizer, a constituição de uma renda universal incondicionada para os mais pobres.
GIUSEPPE COCCO , 53, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor, entre outras obras, de "MundoBraz: O Devir Brasil do Mundo e o Devir Mundo do Brasil".
Monday, August 03, 2009
''Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo''. Entrevista especial com Andrea Fumagalli
''Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo''. Entrevista especial com Andrea Fumagalli
Para o economista italiano Andrea Fumagalli, “a governança política e social baseada na dinâmica livre dos mercados financeiros não tem condições de garantir uma distribuição de renda adequada em relação à nova forma de acumulação e valorização do capitalismo cognitivo”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, “a estrutura da propriedade privada parece inadequada para desenvolver a cooperação social que é necessária para melhorar o processo de acumulação, baseado cada vez mais em conhecimento, relações e aprendizagem”. Fumagalli explica que “a compensação entre a propriedade intelectual e a necessidade de livre circulação e difusão do conhecimento é uma das causas da atual instabilidade estrutural. O conhecimento é um bem ‘comum’, e se ele é privatizado, sua valorização social diminui”.
Ele explica por que considera que, atualmente, os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. “Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais”.
Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é atualmente professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de interesse são teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da inovação e da indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capitalismo cognitivo, entre outros. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo, Verso un nuovo paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007), e La crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor pode falar brevemente sobre as dez teses que o grupo de pesquisadores da Universidade Nômade levantaram recentemente no sentido de tentar compreender a atual crise internacional?
Andrea Fumagalli - As dez teses são fruto de uma discussão coletiva que começou com um seminário sobre a crise financeira, organizado pela Universidade Nômade, em Bolonha, nos dias 12 e 13 de setembro de 2008 e que continua até hoje. Marco Bascetta, Federico Chicchi, Andrea Fumagalli, Stefano Lucarelli, Christian Marazzi, Sandro Mezzadra, Cristina Morini, Antonio Negri, Gigi Roggero e Carlo Vercellone participaram dele, e eu redigi o texto. Podemos dizer que ele é o resultado do “intelecto geral” do movimento italiano, especialmente daquela parte que tem uma abordagem mais heterodoxa da análise marxista e provém da tradição do “operaísmo” (novo movimento operário).
IHU On-Line - O capitalismo está mesmo em crise? O que a caracteriza? Ela representa também a crise da teoria neoliberal?
Andrea Fumagalli - Antes de mais nada, pensamos que a atual crise financeira é uma crise sistêmica. É a crise de todo o sistema capitalista que vem se desenvolvendo desde a década de 1990 até agora. Isso tem a ver com o fato de que, atualmente, os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais.
Isso quer dizer que as origens da crise e suas caracterizações têm a ver com os seguintes fatos:
1. A governança política e social baseada na dinâmica livre dos mercados financeiros não tem condições de garantir uma distribuição de renda adequada em relação à nova forma de acumulação e valorização do capitalismo cognitivo. A negociação individual, a incerteza de receitas estáveis por causa do aumento da precariedade, a redução de salários, principalmente nos países ocidentais, favorecem o aumento de uma dívida especulativa e instável, de um lado, e afetam negativamente a exploração das economias de ganho e de escala (portanto, os ganhos de produtividade), por outro.
2. A estrutura da propriedade privada parece inadequada para desenvolver a cooperação social que é necessária para melhorar o processo de acumulação, baseado cada vez mais em conhecimento, relações e aprendizagem (numa só palavra, no intelecto geral). A compensação entre a propriedade intelectual (o tipo de propriedade privada que substituiu parcialmente a propriedade privada de maquinário) e a necessidade de livre circulação e difusão do conhecimento é uma das causas da atual instabilidade estrutural. O conhecimento é um bem “comum”, e se ele é privatizado, sua valorização social diminui.
IHU On-Line - Quais as consequências do fato de esta crise ser sistêmica?
Andrea Fumagalli – A principal é que ela necessita de intervenções sistêmicas e estruturais.
IHU On-Line - O que significa a crise da estrutura do biopoder capitalista atual?
Andrea Fumagalli - Os mercados financeiros, redirecionando forçosamente parcelas crescentes das receitas do trabalho (como, por exemplo, pagamentos por demissão e seguridade social, diferentes das receitas que, através do Estado social, traduzem-se em programas estatais de saúde e instituições educacionais públicas), substituem o Estado como principal provedor de seguridade social e bem-estar. Desse ponto de vista, eles representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Por isso, exercem biopoder. A crise financeira é, consequentemente, uma crise da estrutura do atual biopoder capitalista.
IHU On-Line - Que alternativas podemos imaginar neste momento, do ponto de vista econômico?
Andrea Fumagalli - Pensamos que atualmente não há condições de implementar uma espécie de New Deal institucionalizado (como foi possível na década de 1930), isto é, um New Deal resultante de uma conciliação política entre o trabalho e o capital. Segue-se que podemos nos deparar com duas soluções possíveis: a primeira é um aumento na instabilidade geopolítica internacional (rumo a uma nova guerra global?), especialmente a fim de definir um novo equilíbrio hierárquico econômico global, em que os EUA perderão o controle unilateral das finanças e da tecnologia. A segunda é que um New Deal, que se baseie numa forma nova de distribuição de renda (por exemplo, renda básica) e ultrapasse a dicotomia entre propriedade privada e estatal rumo a uma propriedade “comum”, seja imposto pela força do movimento social, isto é, um New Deal a partir de baixo. Uma terceira oportunidade pode residir no desenvolvimento de uma nova trajetória econômica, técnica e social, que normalmente é chamada de “economia ecológica”, capaz de resolver qualquer problema com um salto forte no futuro. Mas sou cético quanto a ela, porque esta crise necessita de uma solução de curto prazo e respostas políticas imediatas e gerais.
IHU On-Line - Com esta crise, que outros valores ganham mais espaço no cenário atual? Qual o peso, por exemplo, que adquire o capitalismo cognitivo?
Andrea Fumagalli - Penso que esta é a crise da implementação do capitalismo cognitivo, como a crise de 1929 foi a crise do taylorismo em seu início. A atual crise financeira, que se segue a outras ocorridas nos últimos 15 anos, destaca, de forma sistemática e estrutural, a inconsistência do mecanismo regulatório de acumulação e distribuição que o capitalismo cognitivo tentou se dar até agora. Além disso, com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de valorização perde todas as unidades de mensuração quantitativa ligadas à produção material. Essas medições eram, de certa forma, definidas pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, mensurável com base na tangibilidade da produção e no tempo necessário para a produção. Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a ser desencadeada em diferentes formas de trabalho ou mão de obra que cortam as horas de trabalho efetivamente verificadas para coincidir cada vez mais com o tempo geral da vida. Atualmente, o valor do trabalho ou da mão de obra está na base da acumulação capitalista e é também o valor do conhecimento, dos afetos e das relações, do imaginário e do simbólico. O resultado dessas transformações biopolíticas é a crise da medição tradicional do valor do trabalho ou da mão de obra e, junto com ela, a crise da forma do lucro. Uma solução “capitalista” possível era a medição da exploração da cooperação social e do intelecto geral por meio da dinâmica dos valores de mercado. Dessa maneira, o lucro era transformado em renda, e os mercados financeiros se tornaram o lugar onde o valor do trabalho ou da mão de obra era determinado, transformado num valor financeiro que não é outra coisa do que a expressão subjetiva das expectativas de lucros futuros gerados por mercados financeiros que, dessa forma, reivindicam renda. A atual crise financeira assinala o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma unidade de medição do trabalho ou da mão de obra, ao menos no atual fracasso do capitalismo contemporâneo em termos de governança cognitiva. Consequentemente, a crise financeira é também uma crise da valorização capitalista.
IHU On-Line - Como tem aparecido nos debates econômicos a proposta de uma maior intervenção do Estado na economia?
Andrea Fumagalli - É muito divertido o fato de que alguns dos economistas neoliberais que ainda há dois anos se horrorizavam com a ideia de intervenção estatal agora são a favor dela, talvez citando Keynes e/ou Marx. É claro que esse tipo de intervenção estatal é apenas instrumental. Ela segue o princípio da socialização dos prejuízos, a fim de recuperar no futuro a privatização dos lucros. Mas o principal problema é que a intervenção estatal só desempenha o papel de tapar os atuais buracos resultantes da falta de liquidez monetária (escassez de crédito) sem perspectivas de intervir nas razões estruturais da crise.
IHU On-Line - Neste momento de crise, qual a importância da união entre países, como é o caso da União Europeia, Mercosul, etc.?
Andrea Fumagalli - Ela é muito importante. Um dos resultados desta crise é a morte definitiva da soberania do Estado nacional. Só é possível imaginar uma nova governança política supranacional. Naturalmente, essa possibilidade depende das relações dinâmicas entre as mais relevantes áreas do mundo, especialmente do eixo EUA-Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). Quanto à Europa, a crise demonstra as dificuldades do processo de construção da União Europeia econômica.
IHU On-Line - Que cenários de conflitos sociais são abertos pela crise financeira atual?
Andrea Fumagalli - É bastante difícil responder a essa pergunta. Com certeza, essa crise pode ser uma grande oportunidade para os movimentos sociais globais. A razão disso reside no fato de que, no capitalismo cognitivo, não há espaço para uma reforma política institucional que seja capaz de reduzir a instabilidade que o caracteriza. Nenhum New Deal inovador é possível a não ser aquele impelido pelos movimentos sociais e pelas práticas da institucionalidade autônoma mediante a reapropriação de um sistema de bem-estar saqueado por interesses privados e congelado na política pública. Algumas das medidas que podem ser identificadas, desde a regulamentação dos salários baseada na proposta de uma renda básica até a produção com base na livre circulação do conhecimento, não são necessariamente incompatíveis com os sistemas de acumulação e subsunção do capital, como sugeriram vários teóricos neoliberais. De qualquer modo, novas campanhas de conflito social e reapropriação da riqueza comum podem ser iniciadas com a finalidade de solapar a própria base do sistema produtivo capitalista, isto é, a coerção do trabalho ou da mão de obra, a renda como ferramenta de chantagem e dominação de uma classe sobre outra e o princípio da propriedade privada dos meios de produção (ontem eram as máquinas, hoje também é o conhecimento). Em outras palavras, podemos afirmar que no capitalismo cognitivo uma possível conciliação social de origem keynesiana, mas adaptada às novas características do processo de acumulação, é apenas uma ilusão teórica, sendo inviável de um ponto de vista político.
Uma política reformista plenamente desenvolvida (que tende a identificar uma forma de mediação entre o capital e o trabalho que seja satisfatória para ambos), capaz de garantir um paradigma estrutural estável do capitalismo cognitivo, não pode ser delineada atualmente. Assim, estamos num contexto histórico em que a dinâmica social não deixa espaço para o desenvolvimento de práticas reformistas e, acima de tudo, de “teorias” reformistas. O que se segue disso é que, percebendo que é a práxis que orienta a teoria, só o conflito e a capacidade de criar movimentos multitudinários podem permitir – como sempre – o progresso social da humanidade. Só o reavivamento de conflito social forte supranacional pode criar as condições para superar o estado atual de crise. Deparamo-nos com um aparente paradoxo: para tornar possíveis novas perspectivas reformistas e a estabilidade relativa do sistema capitalista, é necessária uma ação conjunta de natureza revolucionária, capaz de modificar os eixos sobre os quais se baseia a própria estrutura de comando capitalista.
Precisamos, portanto, começar a imaginar uma sociedade pós-capitalista, ou, melhor ainda, a reelaborar a batalha pelo bem-estar [welfare] na crise como organização imediata das instituições do comum. Isso não elimina definitivamente as funções da mediação política, mas remove-as definitivamente das estruturas representativas e absorve-as no poder constituinte de práticas autônomas. Em outras palavras, estamos lidando com a transformação do “comunismo do capital” no “comunismo do intelecto geral” como força viva da sociedade contemporânea, capaz de desenvolver uma estrutura de “estar-comum” [commonfare] e de estabelecer-se como uma condição efetiva e real da opção humana pela liberdade e igualdade. Entre o “comunismo do capital” e as instituições do comum não há especulação ou relação linear de necessidade: trata-se, em outras palavras, de reapropriar-se coletivamente da riqueza social produzida, rompendo os dispositivos da subsunção e do comando capitalista na crise permanente.
Em tal processo, o papel autônomo desempenhado pelos movimentos sociais é importante, não só como programa e ação de caráter político, mas também, e acima de tudo, como ponto de referência para as subjetividades, singularidades ou segmentos de classe mais duramente atingidos e fraudados pela crise. A capacidade de subsunção real da vida no processo de trabalho e produção, a difusão de imagens culturais e simbólicas onipresentes com base em elementos do individualismo (começando com o individualismo “proprietário”) e medidas de “segurança” constroem os principais pontos críticos do processo de controle social e cognitivo do comportamento dos trabalhadores e do proletariado. O alcance e a organização de uma subjetividade autônoma, que já vive nas práticas de resistência e produção de uma nova composição de classe, são condições necessárias para desencadear processos conflituosos, capazes de modificar as atuais hierarquias socioeconômicas. Deste ponto de vista, todos os excessos e insurgências que as subjetividades nomádicas conseguem alcançar e animar são bem-vindas. É só dessa maneira, como mil gotas que se encontram para formar um rio ou mil abelhas que formam um enxame, torna-se possível colocar em movimento formas de reapropriação da riqueza e do conhecimento, invertendo a dinâmica redistributiva, forçando os que causaram a crise a pagar por ela, repensando uma nova estrutura do bem-estar social e comum, imaginando novas formas de auto-organização e produção compatíveis com o respeito pelo meio ambiente e pela dignidade dos homens e mulheres que habitam este planeta.
A crise e os contornos de um ''socialismo totalitário do capital, por Carlo Vercellone
Carlo Vercellone : A crise e os contornos de um "socialismo totalitário do capital"
Por: Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger, 20/07/2009
Na opinião do economista italiano, residente na França, Carlo Vercellone, “pode-se afirmar que a própria noção de capital imaterial é um sintoma da crise da categoria de capital constante que se afirmou com o capitalismo industrial, em que o capital constante se apresentava como trabalho morto, cristalizado nas máquinas, impondo ao trabalho vivo sua dominação”. Na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail, ele explica que “a força de trabalho, ou a intelectualidade difusa, não podem ser consideradas, por definição, como um ativo negociável de uma empresa (contrariamente a uma máquina ou a uma patente, exceto se a força de trabalho fosse reduzida à escravidão). A valoração do capital intelectual e, portanto do trabalho, não pode, pois, ser senão a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda. Isso contribui para explicar por que as finanças desempenham um papel chave no capitalismo cognitivo. Mas este fato contribui também para explicar por que a sucessão de crises financeiras e econômicas graves, à qual assistimos, não foi simplesmente o produto da má regulação das finanças”. Ele critica “a tese dominante, segundo a qual a crise atual seria de origem financeira que só teria afetado, num segundo tempo, a economia dita real”.
Mestre de conferências na Universidade de Paris I Pantheón-Sorbonne, Carlo Vercellone é membro da Unidade de Pesquisas Matisse-Isys (http://matisse.univ-paris1.fr). Especialista da história econômica da Itália, é o organizador da obra coletiva Sommes-nous sortis du capitalisme industriel? (Paris: La Dispute, 2003). Vercellone é autor de Accumulation primitive du capital (1861-1980), Industrialisation et rapport salarial: une application au cas italien (Paris: L'Harmattan, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Com a crise atual, pode-se considerar que as finanças são uma unidade de medida do trabalho e do capital?
Carlo Vercellone - Esta questão me permite esclarecer uma divergência com outras concepções do capitalismo cognitivo, segundo as quais as finanças seriam um mecanismo essencial de regulação das externalidades e da crise de medida do trabalho e do capital. Melhor ainda, segundo alguns autores, as finanças se tornariam uma esfera diretamente produtiva na medida em que o valor emergiria da própria esfera da circulação monetária. Minha posição em relação a esse tipo de interpretação foi sempre muito crítica e contribui para explicar as razões pelas quais eu não creio que a crise atual possa desembocar num novo New Deal, capaz de reconciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento em torno de um novo compromisso capital-trabalho.
Eu me explico. O capitalismo cognitivo vai de par a par com uma crise das categorias fundamentais da economia política: o trabalho, o capital, o valor (voltarei mais tarde sobre esta categoria). No que concerne ao trabalho, o crescimento da sua dimensão imaterial e cognitiva marca, sem dúvida, uma crise de sua medida. O trabalho cognitivo, com efeito, se apresenta, por essência, como a combinação complexa de um trabalho intelectual de reflexão, de acerto, de partilha e de elaboração dos saberes, que se efetua tanto em quantidade como no quadro do trabalho imediato de produção. Nesse quadro, o trabalho mensurado com o tempo passado e certificado na empresa, frequentemente não é mais do que uma fração do tempo social efetivo de trabalho. Esta crise de medida – e este ponto é essencial – não afeta, portanto, em nada, a meu ver, a tese marxista, segundo a qual o trabalho continua sendo a única fonte do valor e da mais-valia. A crise de medida do trabalho está, aliás, estreitamente associada àquela da categoria de capital que, como se sabe, é mais identificada com a noção de capital imaterial ou de capital humano.
Ora, esta identificação corresponde, a meu ver, a um verdadeiro oximoro. Por que um oximoro?
Porque a significação primeira do que se chama capital imaterial corresponde realmente, no essencial, às qualidades intelectuais e criadoras incorporadas na força de trabalho. Ele expressa, então, para retomar uma expressão de Tronti, a maneira pela qual o “trabalho vivo como não capital” desempenha agora um papel hegemônico em relação à ciência e aos saberes codificados, incorporados no capital fixo e na organização empresarial das firmas.
A inteligência difusa ou coletiva
Nesse sentido, pode-se afirmar que a própria noção de capital imaterial é um sintoma da crise da categoria de capital constante que se afirmou com o capitalismo industrial, em que o capital constante se apresentava como trabalho morto, cristalizado nas máquinas, impondo ao trabalho vivo sua dominação. Malgrado a torção introduzida por termos, como capital intelectual, capital intangível ou ainda capital humano, este capital é, pois, na realidade, o que nós chamamos a intelectualidade difusa ou ainda a inteligência coletiva. Este capital escapa, portanto, a toda medida objetiva. Compreende-se, desde logo, uma das razões que, na origem da formidável ascensão do “goodwill”, esteve no cerne do rápido desenvolvimento das bolhas financeiras, e depois de sua explosão na crise. Pode-se, portanto, considerar o “goodwill”, como uma medida do trabalho e do capital? A resposta é evidentemente não, sem por isso precisar atingir a crise atual. O valor desse capital na bolsa é fundamentalmente fictício, na medida em que não corresponde sequer a uma duplicata do capital real. Com efeito, a força de trabalho, ou a intelectualidade difusa, não podem ser consideradas, por definição, como um ativo negociável de uma empresa (contrariamente a uma máquina ou a uma patente, exceto se a força de trabalho fosse reduzida à escravidão). A valoração do capital intelectual e, portanto, do trabalho não pode, pois, ser senão a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda. Isso contribui para explicar por que as finanças desempenham um papel chave no capitalismo cognitivo. Mas este fato contribui também para explicar por que a sucessão de crises financeiras e econômicas graves, à qual assistimos, não foi simplesmente o produto da má regulação das finanças. Ao contrário, como o mostrou com força Gorz, esta dinâmica exprime “muito simplesmente a dificuldade intrínseca que faz funcionar o capital intangível como um capital que faz funcionar o capitalismo dito cognitivo como um capitalismo”. É o que nos mostra a análise da origem, do sentido e dos riscos da crise econômica e financeira atual.
IHU On-Line - O capitalismo está em crise, ou nós estamos simplesmente vivendo uma crise financeira? O que caracteriza este momento? Será que ele também marca a crise da teoria neoliberal?
Carlo Vercellone - Sou resolutamente critico em face da tese dominante, segundo a qual a crise atual seria uma crise de origem financeira que só teria afetado num segundo tempo a economia dita real. Esta tese encontra, aliás, duas formulações principais, cujos limites analíticos convêm sublinhar, bem como suas implicações políticas.
A primeira formulação corresponde à concepção dominante compartilhada pela maioria dos economistas mainstream. Estes, após terem defendido durante anos as virtudes do rigor orçamentário, se converteram rapidamente em fervorosos defensores de políticas keynesianas de retomada e de salvamento do sistema financeiro. Segundo esta primeira formulação, a crise atual corresponderia a uma espécie de acidente de percurso no desenvolvimento das finanças liberalizadas e mundializadas, cujo balanço permaneceria fundamentalmente positivo. A crise seria essencialmente o efeito de uma série de disfunções técnicas e de riscos morais das finanças, que teria desestabilizado a regulação neoliberal de um sistema econômico intrinsecamente sadio. A terapia anticrise consistiria, portanto, em intervenções excepcionais e transitórias de retomada, associadas a medidas de moralização e de reregulamentação parcial das finanças na linha dos acordos de Basiléia-II. De nenhum modo, seria questão de recolocar em causa os pilares da regulação neoliberal, notadamente por aquilo que se refere à relação salarial e ao desmantelamento das instituições do Welfare-State.
Um “socialismo neoliberal” do capital
Temos aí o que se pode chamar um keynesianismo “bastardo”, ou melhor, um “socialismo neoliberal” do capital, que traduz bem a orientação das políticas econômicas adotadas pela maioria dos governos, notadamente na Europa. A esta concepção se adapta bem o célebre adágio “é preciso que tudo mude, a fim de que nada mude”. A razão desta estratégia não depende somente de uma adesão ideológica obstinada ao neoliberalismo. Ela exprime, a meu ver, de maneira mais fundamental, a dificuldade de um processo de autorreforma do capital, capaz de implantar um novo New Deal, e isso por razões em grande parte estruturais referentes à reprodução do capitalismo cognitivo e à sua incapacidade de reativar uma lógica de crescimento, capaz de integrar, pelo menos em parte, os interesses das classes subalternas. Voltaremos a isso. Como prova, basta pensar nas recentes declarações do principal economista do FMI, quando ele apela a refletir hoje na “implantação estrutural de reformas para diminuir os déficits orçamentários no receio de que os mercados (financeiros) não enlouqueçam ante a decolagem do endividamento público”, esquecendo que este último justamente se desenvolveu para voar ao seu socorro.
O conflito entre a vocação rentável do capitalismo financeiro e o “bom” capitalismo produtivo
A segunda formulação desta tese inspira-se numa concepção autenticamente keynesiana, ou marxo-keynesiana. Para esta análise, o sentido e o cacife da crise atual se encontraria no conflito entre a vocação rentável do capitalismo financeiro e o “bom” capitalismo produtivo, portador, este, de uma lógica de acumulação favorável ao crescimento da produção e do emprego. Desta interpretação resulta, então, a proposição de uma espécie de compromisso “neorricardiano” entre salário e capital produtivo contra o poder das finanças. O compromisso deveria permitir restabelecer a hegemonia do capitalismo empresarial da época fordista e uma repartição menos inigualitária da renda. Nessa base, nossas economias poderiam reencontrar - assim nos dizem - as condições de um crescimento próximo do pleno emprego, e tudo isso num contexto de substancial continuidade com as modalidades fordistas de organização do trabalho e de regulação da relação salarial.
Esta grade de leitura nos parece errônea por três razões estreitamente interligadas:
1ª) a denúncia do papel perverso das finanças é desconectado de uma análise das profundas transformações da organização social da produção e da demanda social. Estas não estão mais fundadas na produção de bens padronizados, mas sobre o lugar cada vez mais central do conhecimento e do imaterial, e notadamente do que eu chamo de produções do homem para o homem (saúde, educação, cuidados, pesquisa). É o esquecimento dessas dimensões essenciais que pode nutrir a ideia errônea, segundo a qual a saída da crise se encontraria num relançamento keynesiano do modelo fordista do pleno emprego e da produção/consumo de massa.
2ª) ela nega a importância das mutações que, neste quadro, conduziram ao esgotamento do papel hegemônico da lógica do capitalismo industrial e a uma vocação especulativa e rentável mais pronunciada do próprio capital produtivo. Nesta evolução, a financeirização do capital produtivo não é, aliás, senão uma das expressões de uma verdadeira multiplicação das formas rentáveis de valorização do capital (patentes, marcas, etc.).
3ª) ela faz da crise atual o simples resultado da repetição, desde os anos 1980, de crises financeiras graves, obedecendo a uma lógica cíclica e repetitiva, endógena às próprias finanças e à sua tendência de se autonomizar e a desestruturar do exterior “a economia dita real”.
A compenetração entre capital financeiro e capital produtivo
Certamente, não se trata aqui de negar a autonomia relativa e o poder sistêmico de que dispõem as finanças. Um poder que se manifesta tanto durante as fases de crescimento, quando ele se apropria de uma parte exorbitante dos lucros, como nas fases que seguem à explosão das bolhas especulativas. Neste quadro, a ameaça de transformar uma crise local numa crise global permite, com efeito, às finanças tomar como refém o conjunto das instituições, obtendo dos bancos centrais e dos governos concessões formidáveis e quase sem condições. No entanto, insistir nas finanças como se se tratasse de um poder autônomo quase absoluto, tende a fazer esquecer a compenetração entre capital financeiro e capital produtivo e as outras causas socioeconômicas que estão na origem da crise sistêmica do capitalismo contemporâneo.
Este tipo de concepção não chega, por exemplo, a ver como a dinâmica que conduziu da crise da bolha da internet em 2000 à crise dos subprimes não se encontra na simples repetição, de maneira idêntica, de ciclos especulativos ligados à lógica autônoma das finanças. Apesar de certos traços comuns, uma análise atenta da passagem histórica da “new economy” à crise dos subprimes permite mostrar o aprofundamento de certo número de contradições maiores que vão afetar, na economia dita real, o desenvolvimento do capitalismo cognitivo. Contradições essas que dizem respeito tanto à regulação da relação capital-trabalho, como à questão dos mercados e das finalidades sociais da produção.
É preciso recordar, nesse contexto, como o aumento nos preços das ações na bolsa Nasdaq tinha sido saudado como o sinal anunciador do milagre da new economy. Diante da crise dos mercados e da competitividade de setores da velha economia material fordista, a economia americana, graças à internet e às novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC), era vista como tendo encontrado o caminho de um novo crescimento potencialmente inesgotável e capaz de lhe restituir uma posição hegemônica na economia mundial. Ora, a explosão da bolha da internet e dos valores da bolsa Nasdaq, em março de 2000, veio justamente mostrar o fim dos mitos da new economy. Por quê? Porque o financiamento dos starts-up e o enorme esforço de investimento nos TIC, para criar novos sites comerciais, logísticas proprietárias, etc., se traduziu por uma formidável crise de superprodução e de superinvestimento, sem chegar a criar mercados comerciais que permitissem valorizá-los.
Esta crise tem uma importância crucial na história do capitalismo cognitivo
Esta crise tem uma importância crucial na história do capitalismo cognitivo.
A crise da bolha da “new economy” marca, com efeito, limites estruturais que o capital encontra em sua estratégia lucrativa, visando a submeter a economia do imaterial e da internet à lógica comercial e do lucro. Na web, os princípios da gratuidade e da auto-organização em rede continuam predominando, e isso a despeito das tentativas de instaurar barreiras comerciais ao acesso e de reforçar os direitos de propriedade intelectual. Ela mostra, ao mesmo tempo, a dificuldade de o capital afirmar sua hegemonia na organização social da produção. Em particular, a ascensão das redes de troca e de produção não comercial dá prova de uma eficácia econômica superior à do setor privado. O modelo do software livre e de Linux se afirma como um princípio de coordenação e de produção de saberes alternativo tanto à empresa como ao mercado, desestabilizando o monopólio da Microsoft e a estratégia capitalista de privatização do conhecimento e dos bens informacionais.
Nesse contexto de impasse da new economy, o governo americano e o Federal Reserve (FED ) já se encontram confrontados, em 2000, ante o risco de uma depressão maior. De onde a tentativa de reativação da economia por uma política de taxas de juro muito baixas que, para manter o consumo, desconectava a despesa e a renda através da expansão do crédito, notadamente o hipotecário. Era possível fazer outra opção, por exemplo, a de uma reforma da política de rendas, permitindo um crescimento dos salários e uma redução das formidáveis desigualdades sociais que se cruzaram desde os anos 1980.
Mas por que esta hipótese – embora visada – foi então rapidamente descartada? Uma das principais razões que continua atual é, a nosso ver, a seguinte: a precarização constitui, no capitalismo cognitivo, uma condição essencial para assegurar o controle de uma força de trabalho que é cada vez mais autônoma no plano da organização da produção. A opção de favorecer o desenvolvimento do endividamento massivo dos negócios parece, em troca, permitir ao capital combinar dois objetivos do ponto de vista da regulação da relação salarial.
O primeiro é o de estimular a demanda pelo crédito, assegurando ao capital financeiro encontrar, pelo menos no começo, investimentos muito rentáveis e novas formas de retirada antecipada da mais-valia.; o segundo consiste na maneira pela qual o mito neoliberal da “sociedade de proprietários”, associada ao crescimento exponencial da dívida privada das transações individuais ou familiares permite forjar, junto aos trabalhadores, uma subjetividade dependente e submetida ao capital. É assim que à crise da “new economy” sucede, a partir de 2002, a formação da nova bolha especulativa, dita dos subprimes.
A construção civil e a economia do imaterial
O crescimento americano é puxado, durante este período, pela ação conjunta do setor mais tradicional da economia material (a construção civil) e do setor, sob muitos aspectos o mais parasitário, da economia do imaterial. Eu me refiro ao desenvolvimento dos serviços financeiros que se auto-alimentam graças à titulação e a toda uma parafernália de inovações financeiras que parecem permitir uma diluição infinita dos riscos.
No total, a financeirização e, mais em geral, o desenvolvimento da localização da renda são, em grande parte, a consequência e não somente a causa das contradições inerentes à lógica de regulação do capitalismo cognitivo. Este ponto é também essencial para compreender o sentido e as causas da abertura da crise atual, que seria errôneo considerar essencialmente como uma crise de origem financeira. Numerosos fatores econômicos, sociais e ecológicos “reais” de uma crise global eram visíveis bem antes da crise financeira. Eles permitem explicar o estouro e, ao mesmo tempo, a dificuldade de pensar a possibilidade de uma saída da crise por cima, sem uma ação que vise a reduzir a um lugar secundário o papel do lucro e das relações comerciais.
Lembro apenas alguns dos fatores mais importantes.
A crise ecológica, da qual uma de suas manifestações se manifesta, aliás, entre 2006-2007, no aumento do preço da gasolina e dos alimentos que desempenham um papel central no consumo dos bens domésticos, notadamente daqueles mais pobres e mais endividados. Esta evolução, associada, a partir de 2005, à alta das taxas de juro, condena, de fato, uma grande parte dos negócios a uma situação de insolvabilidade e contribui para desencadear a crise dos subprimes e o desmoronamento do setor imobiliário. Entretanto, mais fundamentalmente, a crise ecológica marca, na escala planetária, os limites estruturais do modelo liberal produtivista. Desse ponto de vista, uma política de saída da crise não pode, pois, de nenhuma forma, basear-se exclusivamente num plano de retomada do consumo privado e dos negócios privados. Ela requer, antes, uma verdadeira socialização do investimento nas atividades que permitam repensar o urbanismo, a agricultura, a promoção da economia de energia e que, por natureza, escapam, em grande parte, à lógica comercial e mercadológica.
A possibilidade de uma política de retomada da economia fundada na lógica mercadológica se encontra, de maneira mais geral, presa à armadilha de outros obstáculos. De uma parte, como vimos, a new economy é incapaz de tomar o lugar da velha economia fordista. A explosão da bolha especulativa da internet já mostrou a impossibilidade, da parte do capital, de integrar a economia do imaterial e do conhecimento numa dinâmica de crescimento capaz de assegurar, numa nova base, a expansão das saídas mercadológicas.
De outra parte, os setores saídos da velha economia fordista se encontram numa fase de declínio estrutural, torturados entre a situação dos mercados e a concorrência dos países emergentes, como o mostra hoje a crise dramática da indústria automobilística encarnada pela falência do símbolo da indústria americana, a General Motors. Sua retomada se chocaria, aliás, com coerções ecológicas incontornáveis.
Ora, os únicos atores em que as necessidades e a demanda social estão em contínua expansão correspondem ao que se chamam produções do homem para o homem (saúde, educação, pesquisa, cuidados às pessoas), asseguradas tradicionalmente na Europa, pelos serviços coletivos do Welfare-State . Este elemento contribui para explicar a pressão extraordinária exercida pelo capital para privatizar ou, em todo o caso, submeter à lógica mercadológica esses serviços coletivos, e isso muito mais por seu papel estratégico no crescimento da demanda social do que pelo controle biopolítico da população. No entanto, esse tipo de atividade não pode ser submetido à racionalidade econômica do lucro e à lógica mercadológica a não ser ao preço de um esbanjamento de recursos e desigualdades sociais profundas que, por acréscimo, correria o risco de desestruturar as forças criadoras de base de uma economia fundada no papel motor do saber e de sua difusão.
Três principais argumentos reivindicam esta tese:
O primeiro está ligado ao caráter intrinsecamente cognitivo, afetivo e comunicativo dessas atividades, nas quais o trabalho não consiste em agir sobre a matéria inanimada, mas sobre o próprio homem, numa relação de co-produção de serviços.
O segundo argumento se refere à impossibilidade de elevar a produtividade e a rentabilidade dessas atividades, mensurando-as por meio de critérios quantitativos próprios à administração das empresas, a não ser em detrimento da qualidade que caracteriza a eficácia de uma relação de serviços em setores, como a saúde, o ensino e a transmissão/produção de conhecimentos.
O terceiro está ligado às distorções profundas que a aplicação do princípio da demanda solvável introduziria na alocação dos recursos e no direito ao acesso a esses bens comuns. Essencialmente, a produção do comum se funde, efetivamente, com a gratuidade e com o livre acesso. O financiamento das produções do homem para o homem não pode, pois, ser baseado no princípio da demanda privada solvável, mas deve repousar sobre o preço coletivo e político representado pelo lado fiscal, a cotização social ou por outras formas de mutualização real dos recursos.
IHU On-Line - Quais são as principais diferenças entre a crise atual e a crise de 1929?
Carlo Vercellone - Todos esses elementos contribuem também para explicar certas diferenças maiores entre o sentido e os cacifes da grande depressão dos anos 1930 e a crise atual. A crise de 1929 se apresenta a posteriori como uma crise de crescimento da lógica do capitalismo industrial, fundada sobre a racionalização tayloriana da produção e a integração da reprodução da força de trabalho à lógica mercadológica. Ela resulta, no essencial, da defasagem entre o desenvolvimento dos princípios da produção de massa e um modo de regulação concorrencial da relação salarial que impede a rápida expansão do consumo de massa. O cacife principal de uma saída da crise encontrava-se, então, na criação de instituições (as Convenções Coletivas, o Estado-providência, etc.) que permitissem uma progressão dos salários próxima àquela da produtividade. Dessa maneira, podia realizar-se o sonho de Henry Ford, aquele de uma classe operária que se torna o principal comprador dos bens de consumo duráveis que ela produz. Consistindo a racionalidade econômica do capital industrial em produzir sempre mais mercadorias com menos tempo. Então, com custos unitários e de preços decrescentes, ela poderá encontrar uma força progressiva, integrando estreitamente o assalariado na dinâmica da acumulação do capital, satisfazendo dessa maneira uma massa crescente de necessidades, pouco importando se verdadeiras ou supérfluas. Esta força progressiva do capital, fundada sobre sua capacidade de integrar a classe operária no interior de sua lógica de desenvolvimento, foi a base do que a escola da regulação chamou de compromisso fordista: os sindicatos aceitam a racionalização tayloriana e o monopólio do patronato sobre a organização do trabalho. Em contrapartida, os trabalhadores obtêm uma progressão dos salários que lhes permite o acesso ao consumo de massa.
Esta dialética capital-trabalho é, no entanto, rompida no capitalismo cognitivo. A crise atual não é uma crise de crescimento do capitalismo cognitivo. Ela exprime, de maneira mais fundamental, o caráter inconciliável do capitalismo cognitivo com as condições sociais necessárias ao desenvolvimento de uma economia fundada no conhecimento, bem como à preservação do equilíbrio ecológico do planeta. Para citar uma passagem incisiva e profética de André Gorz em O Imaterial (São Paulo: Annablume, 2005), ela exprime a maneira com que “O capitalismo... chegou em seu desenvolvimento das forças produtivas a uma fronteira, passada a qual ele não pode haurir plenamente uma parte de suas potencialidades a não ser passando para uma outra economia.” Esta contradição exprime em termos marxistas a crise da racionalidade econômica do capital encarnada pela lei do valor, pensada como a relação social que faz da lógica da mercadoria o critério chave e progressivo da produção de valores de uso e de satisfação das necessidades.
Finalmente, para retomar uma formulação de Gramsci, a crise atual é “uma grande crise, um momento trágico, no qual o antigo morre, o novo não chega a ver a luz do dia, e nesse claro-obscuro surgem os monstros”. Mas, se nada será como antes, é preciso admitir a dificuldade de definir com precisão os cenários de uma eventual saída da crise. De qualquer maneira, é extremamente difícil compartilhar da hipótese, segundo a qual a crise atual poderia conduzir o capital a tomar consciência da necessidade de um novo New Deal, capaz de conciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento, encontrando uma solução viável aos problemas inerentes simultaneamente à desigualdade na repartição da renda, à insuficiência da demanda, à crise ecológica e à instabilidade das finanças. Mais precisamente, a possibilidade de um novo New Deal, de um novo compromisso capital-trabalho só se choca contra o muro representado pelo poder das finanças. Ela também tropeça em dois obstáculos maiores que traduzem, como vimos, a expansão da força progressiva do capital e a crise da lei do valor.
O primeiro está ligado à maneira com que um eventual reforço das garantias do Welfare State, reduzindo de maneira substancial a sujeição à relação salarial, comportaria para o capital um risco maior, o de desestabilizar profundamente os mecanismos de controle do trabalho cognitivo fundados em grande parte na precariedade. Poderia resultar no desenvolvimento de conflitos, confluindo não somente sobre o plano de repartição da renda, mas também, de maneira mais fundamental, sobre a própria definição da organização e das finalidades sociais da produção.
O segundo obstáculo depende da maneira como, pelo menos nos países desenvolvidos, a maior parte das necessidades que a produção é suscetível de satisfazer se encontra fora das atividades nas quais a racionalidade econômica do capital pôde desempenhar, no capitalismo industrial, um papel progressivo.
É por todas essas razões que o retorno pela força da intervenção do Estado, como regulador macroeconômico e salvador em último recurso dos desequilíbrios do capital, não nos parece ser o prelúdio de um novo New Deal. Esta evolução parece, antes, delinear os contornos de um “socialismo totalitário do capital”, posto a serviço da continuidade de políticas neoliberais de expropriação do comum e de expansão parasitária da esfera mercadológica. Nada é, no entanto, inelutável. Apesar da sua dinâmica devastadora e os riscos de implosão que ela comporta, a bifurcação histórica aberta pela crise atual se apresenta como um processo complexo, aberto e profundamente conflituoso, que pode dar lugar a evoluções que se processem em direções opostas.
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>> Carlo Vercellone já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line.
Entrevistas:
* Um panorama sobre a nova divisão cognitiva do trabalho. Publicada na IHU On-Line número 161, de 24-10-2005.
* É na reversão das relações de saber e poder que se encontra o principal fator da passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo. Publicada na IHU On-Line número 216, de 23-04-2007.