Friday, April 20, 2007


Um "Novo Pacto" possível: movimentos sociais e produção


Cap. 3 do livro “Glob(AL): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada
Antonio Negri e Giuseppe Cocco (Rio de Janeiro: Record, 2005)


Diante dos limites do desenvolvimentismo e diante, sobretudo, de sua crise, que se define essencialmente na década de 1980, justo no período de abertura democrática que caracteriza Brasil, Argentina e México, o neoliberalismo constituiu uma falsa resposta. Mesmo percebendo os limites do Estado desenvolvimentista e as dimensões estruturais de sua crise, as políticas neoliberais nos países do subdesenvolvimento não conseguem inovar no terreno produtivo e malogram quando propõem o mercado como espaço de mobilização social. Quando, ademais, apresentam-se como mecanismo de universalização dos direitos, o embuste é evidente: ter direito aos direitos no neoliberalismo significa ter poder de compra, ser consumidor. O público é construção de hierarquia e passividade: "audiência". Uma operação ineficaz e que, na realidade, apenas promove a privatização do público e sua sistemática fragmentação: impedindo, portanto, qualquer perspectiva de constituição do comum*, hoje essencial ao próprio crescimento econômico. O neoliberalismo não é somente uma ideologia do egoísmo privado, mas é também uma prática arcaica das relações de produção, pois não vê (donde, não pode reconhecer) que hoje o valor é apenas um produto da sociedade inteira posta a trabalhar.


Nesse sentido, o malthusianismo renovado dos neoliberais, que cria raridade de forma artificial, acaba apenas por atualizar dramaticamente a tradicional cumplicidade que une o arcaico ao moderno desde os primeiros passos da industrialização capitalista na América Latina.


Uma nova perspectiva só pode ter lugar através da proposta de uma saída do âmbito das leis férreas do mercado, proposta que não deve jamais se reduzir a um sucedâneo tecnocrático (ou estatal) do mercado: ela deve se abrir para uma inovação democrática radicalmente fundada nas dimensões constitutivas de desejo e de liberdade coletiva, que somente os movimentos sabem produzir. São, de fato, os movimentos dos anos 90 na América Latina que captaram e qualificaram como falsa a alternativa entre retorno ao passado desenvolvimentista (em cujo centro encontra-se o Estado) e um espaço público reduzido à lógica individualista do mercado e do poder de compra.


A grande oportunidade que se desenha é a da solução do quebra-cabeça constituído, por um lado, pela própria crise da representação e do Estado e, por outro, pela ferocidade das "obrigações" externas, ou seja, a oportunidade de um impulso constituinte capaz de arrancar as obrigações externas da falsa (mas feroz) alternativa entre sua gestão técnica (as receitas do FMI) e o curto-circuito isolacionista (a moratória), capaz, portanto, de colocar este quebra-cabeça em um terreno de inovação democrática. É o que se pode chamar de "Novo Pacto" , um New Deal dentro da globalização latino-americana.


Mas quais podem ser as condições para a constituição de um "novo pacto", ou seja, as possibilidades de afirmação de uma inovação democrática radical? O que pode ser um "novo pacto", quando a relação salarial não tem mais condições de produzir uma perspectiva de grande confronto (e, portanto, de grande mediação) entre capital e trabalho? O que pode ser o "novo pacto" em uma situação na qual a produtividade do trabalho na fábrica (e o funcionamento da lei do valor) não pode mais subsistir como parâmetro de comensurabilidade dos agregados macroeconômicos? O que pode ser distribuído no âmbito de um "novo pacto", quando o modo de produção pós-fordista põe em crise, ao transformá-la, a própria relação entre produção e reprodução e, portanto, a consistência mesma da riqueza, ou seja, do "bolo" a ser distribuído? Que pacto pode, enfim, sustentar a dinâmica do desenvolvimento, quando desaparece a perspectiva de uma inclusão social através da correlação entre crescimento do PIB e crescimento do emprego? Que pacto pode basear-se na quase não-negociabilidade das obrigações externas? Qual é o espaço político do pacto diante da crise de soberania do Estado-nação?

Na realidade, o único pacto possível é aquele que supera (tendencialmente, mas já de uma maneira ativa e perceptível) a própria estrutura da subordinação das forças produtivas (do trabalho) a relações capitalistas de produção e de domínio e que consegue, assim, abrir novos espaços e novos tempos construtivos, sociais, diretamente produtivos. Não mais simplesmente distribuição dos frutos do crescimento, mas distribuição das dinâmicas de produção da riqueza como momento fundamental de mobilização produtiva. A constituição das bases materiais da cidadania identifica-se com estas dinâmicas de distribuição da riqueza: hoje, construir riqueza e ter direitos deve se transformar na mesma coisa. Portanto, construir o pacto é organizar os movimentos. Organizar os movimentos é mobilizar produtivamente a sociedade. Isso vale em geral, mas vale mais ainda justamente nos países em que a estrutura do poder sempre confundiu a ordem arcaica com a ordem produtiva, utilizando a primeira dentro da segunda: se alguma vez existiram estágios de desenvolvimento, hoje eles já não existem e as diversas formas do desenvolvimento apresentam-­se contemporaneamente. Os motores do desenvolvimento transformaram-se em um único motor: a sociedade que se põe a trabalhar, a tomada de consciência social de um processo comum de construção da liberdade.


Constituir o pacto é a mesma coisa que organizar os movimentos e, portanto, mobilizar a produção. Assim sendo, trata-se de organizar o trabalho dos movimentos, isto é, de constituir o espaço público do trabalho comum da multidão. Os eixos fundamentais do trabalho comum devem encontrar seu espaço público. O novo direito público da produção intelectual, o reconhecimento da autovalorização (cooperativas, fábricas ocupadas, terras ocupadas etc.) e das várias formas de autoprodução (das favelas, do terciário informal, da liberdade de circular em rede) devem encontrar uma esfera pública que reconheça as dimensões produtivas da cidadania (a renda garantida; o acesso universal à educação; a "ação afirmativa" contra o racismo, a xenofobia e o sexismo; a liberdade de migrar; um sindicalismo estruturado em bases territoriais e de cidadania e não meramente categoriais; uma democracia de base estruturada em bases municipais etc.). É este novo quadro federalista (um federalismo das instâncias sociais) que representa, portanto, para além do Estado e do mercado, um terreno fundamental de materialização do "novo pacto".


Os governos mais inovadores da América Latina serão aqueles que souberem se mover nesta direção. E só assim poderão garantir as condições internas de sua ação global. Mas é evidente que o que se exige hoje é uma nova estação no-­global, um novo caminho que leve de volta de Porto Alegre e Mumbay a Seattle. Mas falaremos disso mais adiante.



ANEXO: OS EXEMPLOS DE UMA LÓGICA OPOSTA


No Brasil, os movimentos dos jovens em geral e dos jovens negros das periferias e das favelas, em particular, revelam uma nova subjetividade 1. Sua dinâmica de luta forma-se no cruzamento dos comportamentos de resistência e das redes sociais de produção: neste cruzamento, sem nenhuma nostalgia do Estado neo-escravista e corporativo, transforma-se o espaço público em espaço do trabalho comum. Os movimentos culturais, assim como as redes de cursos, administrados em autogestão, para a universalização do acesso dos negros e dos pobres às universidades "públicas" (na realidade, "estatais") convergem na construção de um espaço comum de resistência e produção que constrói alteridade seja em relação ao Estado, seja em relação ao mercado e deslocam a retórica consensual dos direitos do homem para o terreno ético dos modos de existência de homens dotados de direitos: assim, resistem ao presente criando 2. São estes movimentos que introduziram elementos de verdadeira inovação, de radical reformismo na agenda política, inclusive a do governo Lula: reivindicando, por exemplo, a política de "ação afirmativa" para os negros e pobres. Pela primeira vez, afirma-se um terreno de luta que assume explicitamente como inimigas as dimensões biopolíticas do poder, ou seja, um bloco biopolítico de gestão da vida que, ao mesmo tempo, pratica sobre suas próprias populações os maiores massacres que já se viu na história da humanidade" 3.


Na Argentina, as manifestações insurrecionais de 19 e 20 de dezembro de 2001 não somente derrubaram dois governos, mas sobretudo abriram um formidável período de experimentação e inovação social, econômica e política. O fechamento de ruas pelos piqueteros, os cacerolazos das camadas médias urbanas, o assédio sistemático aos bancos por parte dos poupadores, as assembléias de bairro e interbairros, a autogestão das fábricas falidas e as redes de economia solidária constituíram uma nova configuração do trabalho e da política, mais além do Estado e do mercado. Trata-se da negação de todo tipo de determinismo que ligaria a dissolução da relação salarial canônica ao inevitável enfraquecimento dos movimentos sociais. Ao contrário, o quase desaparecimento da relação salarial baseada em um contrato por tempo indeterminado e garantido pela dupla representação do sindicalismo peronista e do Estado não impediu, por um lado, as mobilizações sociais maciças e radicais e, por outro, constituiu uma de suas condições necessárias. A potência do movimento argentino, não obstante a inexistência das formas tradicionais de organização e de relações sociais baseadas no emprego formal e sindicalizado, isto é, não obstante a ausência de uma esquerda de tipo europeu, mostra quanta liberdade pode gerar a crise daquela relação de servidão que é o trabalho assalariado.


No México, o neozapatismo desenhou, desde o início dos anos 90, a nova face (tão aberta quanto permanece mascarado o rosto do subcomandante Marcos) da globalização do ponto de vista das classes subalternas: não um mero instrumento de reconstrução da hegemonia imperialista, mas um processo aberto, no qual debatem-se dinâmicas constituintes, antagonistas e/ou alternativas. Nas montanhas do Chiapas, a crise do Estado nacional-desenvolvimentista aparece não apenas como conseqüência das políticas neoliberais, mas também e sobretudo como um novo espaço de luta e para as lutas. Em março de 2001, a comandante Esther (do EZLN) denunciou, diante do Congresso da União 4, que "neste país fragmentado vivem os índios, condenados à vergonha de serem da cor que são, de falarem a língua que falam (...)" para dizer em seguida aos deputados que "foram incapazes de reconhecer na nossa [dos índios] diferença a igualdade que, como seres humanos e como mexicanos, compartilhamos com vocês e com todo o povo mexicano" 5. A insurreição dos indígenas nas montanhas do Chiapas articula-se com os movimentos de ação global: Possa "na era da globalização uma especificidade falar a todos (...) seu agir local é considerado como ação política dentro das redes, (...) fazer sociedade (...) entre a idéia de mudança e o seu processo de realização" 6.


Hoje sabemos que a antecipação zapatista, assim como as lutas dos piqueteros argentinos e as marchas dos sem-terra brasileiros indicaram um longo caminho, que vai de Seattle às oceânicas manifestações globais contra a guerra no Iraque, passando por Gênova e pelo Fórum Social de Porto Alegre. Hoje, Lula e Kirchner constituem governos que, para trabalhar, devem confrontar-se com o impulso desses movimentos. Também Vicente Fox, no México, foi obrigado (de algum modo...) a dar espaço ao avanço zapatista.



(*) Para uma definição de "comum", veja Multidão, editado pela Record.


Notas


  1. No Brasil, os afro-brasileiros, isto é, auqueles que escolheram e escolhem autodenominar-se negros, fizeram da afirmação de sua raça (isto é, da percepção radicalizada de si mesmo e dos outros) um poderoso instrumento de luta contra o racismo. Suas lutas mergulham raízes na reconstrução da "negritude" e, portanto, na rica herança africana: a cultura afro-brasileira do candomblé, da capoeira etc., mas também a apropriação do legado cultural e político do Atlântico Negro, ou seja, do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, do renascimento cultural do Caribe, da luta contra o apartheid na África do Sul. Ver Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e anti-racismo no Brasil, Editora 34, São Paulo, 1999, p. 58.

  2. Félix Guattari e Gilles Deleuze diziam: "Os livros de filosofia e as obras de arte contêm também a sua quantidade inimaginável de sofrimento que faz pressentir a constituição -I'avénement - de um povo. Têm em comum a resistência, resistência à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente." Qu'est-ce que Ia philosophie, ed. De Minuit, Paris, 1991, p. 105.

  3. Michel Foucault, 1/ faut défendre Ia societé, curso no College de France, 1976, EHES, Seuil, Gallimard, Paris, 1997, p. 193. Foucault define a dimensão paradoxal do nazismo como hibridação de um regime social baseado no sangue com um outro baseado na sexualidade.

  4. Em 28 de março de 2001, por ocasião da Caravana Zapatista.

  5. Associações Ya Basta!, La settima chiave. Le Tute Bianche nella caravana zapatista, ed. Neos, Gênova, 2001, pp. 123-4.

  6. "Documento produzido pelos Tute Bianche no retorno do México", em La settima chiave, ibid., pp. 140-1. Tute Bianche, literalmente Macacões Brancos, refere-se à roupa usada pelos integrantes de uma rede italiana do movimento de luta contra a globalização neoliberal.


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