Monday, August 03, 2009

''Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo''. Entrevista especial com Andrea Fumagalli

(publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos em 3/8/2009)

''Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo''. Entrevista especial com Andrea Fumagalli


Para o economista italiano Andrea Fumagalli, “a governança política e social baseada na dinâmica livre dos mercados financeiros não tem condições de garantir uma distribuição de renda adequada em relação à nova forma de acumulação e valorização do capitalismo cognitivo”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, “a estrutura da propriedade privada parece inadequada para desenvolver a cooperação social que é necessária para melhorar o processo de acumulação, baseado cada vez mais em conhecimento, relações e aprendizagem”. Fumagalli explica que “a compensação entre a propriedade intelectual e a necessidade de livre circulação e difusão do conhecimento é uma das causas da atual instabilidade estrutural. O conhecimento é um bem ‘comum’, e se ele é privatizado, sua valorização social diminui”.

Ele explica por que considera que, atualmente, os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. “Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais”.

Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é atualmente professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de interesse são teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da inovação e da indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capitalismo cognitivo, entre outros. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo, Verso un nuovo paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007), e La crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor pode falar brevemente sobre as dez teses que o grupo de pesquisadores da Universidade Nômade levantaram recentemente no sentido de tentar compreender a atual crise internacional?

Andrea Fumagalli - As dez teses são fruto de uma discussão coletiva que começou com um seminário sobre a crise financeira, organizado pela Universidade Nômade, em Bolonha, nos dias 12 e 13 de setembro de 2008 e que continua até hoje. Marco Bascetta, Federico Chicchi, Andrea Fumagalli, Stefano Lucarelli, Christian Marazzi, Sandro Mezzadra, Cristina Morini, Antonio Negri, Gigi Roggero e Carlo Vercellone participaram dele, e eu redigi o texto. Podemos dizer que ele é o resultado do “intelecto geral” do movimento italiano, especialmente daquela parte que tem uma abordagem mais heterodoxa da análise marxista e provém da tradição do “operaísmo” (novo movimento operário).

IHU On-Line - O capitalismo está mesmo em crise? O que a caracteriza? Ela representa também a crise da teoria neoliberal?

Andrea Fumagalli - Antes de mais nada, pensamos que a atual crise financeira é uma crise sistêmica. É a crise de todo o sistema capitalista que vem se desenvolvendo desde a década de 1990 até agora. Isso tem a ver com o fato de que, atualmente, os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais.

Isso quer dizer que as origens da crise e suas caracterizações têm a ver com os seguintes fatos:

1. A governança política e social baseada na dinâmica livre dos mercados financeiros não tem condições de garantir uma distribuição de renda adequada em relação à nova forma de acumulação e valorização do capitalismo cognitivo. A negociação individual, a incerteza de receitas estáveis por causa do aumento da precariedade, a redução de salários, principalmente nos países ocidentais, favorecem o aumento de uma dívida especulativa e instável, de um lado, e afetam negativamente a exploração das economias de ganho e de escala (portanto, os ganhos de produtividade), por outro.

2. A estrutura da propriedade privada parece inadequada para desenvolver a cooperação social que é necessária para melhorar o processo de acumulação, baseado cada vez mais em conhecimento, relações e aprendizagem (numa só palavra, no intelecto geral). A compensação entre a propriedade intelectual (o tipo de propriedade privada que substituiu parcialmente a propriedade privada de maquinário) e a necessidade de livre circulação e difusão do conhecimento é uma das causas da atual instabilidade estrutural. O conhecimento é um bem “comum”, e se ele é privatizado, sua valorização social diminui.

IHU On-Line - Quais as consequências do fato de esta crise ser sistêmica?

Andrea Fumagalli – A principal é que ela necessita de intervenções sistêmicas e estruturais.

IHU On-Line - O que significa a crise da estrutura do biopoder capitalista atual?

Andrea Fumagalli - Os mercados financeiros, redirecionando forçosamente parcelas crescentes das receitas do trabalho (como, por exemplo, pagamentos por demissão e seguridade social, diferentes das receitas que, através do Estado social, traduzem-se em programas estatais de saúde e instituições educacionais públicas), substituem o Estado como principal provedor de seguridade social e bem-estar. Desse ponto de vista, eles representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Por isso, exercem biopoder. A crise financeira é, consequentemente, uma crise da estrutura do atual biopoder capitalista.

IHU On-Line - Que alternativas podemos imaginar neste momento, do ponto de vista econômico?

Andrea Fumagalli - Pensamos que atualmente não há condições de implementar uma espécie de New Deal institucionalizado (como foi possível na década de 1930), isto é, um New Deal resultante de uma conciliação política entre o trabalho e o capital. Segue-se que podemos nos deparar com duas soluções possíveis: a primeira é um aumento na instabilidade geopolítica internacional (rumo a uma nova guerra global?), especialmente a fim de definir um novo equilíbrio hierárquico econômico global, em que os EUA perderão o controle unilateral das finanças e da tecnologia. A segunda é que um New Deal, que se baseie numa forma nova de distribuição de renda (por exemplo, renda básica) e ultrapasse a dicotomia entre propriedade privada e estatal rumo a uma propriedade “comum”, seja imposto pela força do movimento social, isto é, um New Deal a partir de baixo. Uma terceira oportunidade pode residir no desenvolvimento de uma nova trajetória econômica, técnica e social, que normalmente é chamada de “economia ecológica”, capaz de resolver qualquer problema com um salto forte no futuro. Mas sou cético quanto a ela, porque esta crise necessita de uma solução de curto prazo e respostas políticas imediatas e gerais.

IHU On-Line - Com esta crise, que outros valores ganham mais espaço no cenário atual? Qual o peso, por exemplo, que adquire o capitalismo cognitivo?

Andrea Fumagalli - Penso que esta é a crise da implementação do capitalismo cognitivo, como a crise de 1929 foi a crise do taylorismo em seu início. A atual crise financeira, que se segue a outras ocorridas nos últimos 15 anos, destaca, de forma sistemática e estrutural, a inconsistência do mecanismo regulatório de acumulação e distribuição que o capitalismo cognitivo tentou se dar até agora. Além disso, com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de valorização perde todas as unidades de mensuração quantitativa ligadas à produção material. Essas medições eram, de certa forma, definidas pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, mensurável com base na tangibilidade da produção e no tempo necessário para a produção. Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a ser desencadeada em diferentes formas de trabalho ou mão de obra que cortam as horas de trabalho efetivamente verificadas para coincidir cada vez mais com o tempo geral da vida. Atualmente, o valor do trabalho ou da mão de obra está na base da acumulação capitalista e é também o valor do conhecimento, dos afetos e das relações, do imaginário e do simbólico. O resultado dessas transformações biopolíticas é a crise da medição tradicional do valor do trabalho ou da mão de obra e, junto com ela, a crise da forma do lucro. Uma solução “capitalista” possível era a medição da exploração da cooperação social e do intelecto geral por meio da dinâmica dos valores de mercado. Dessa maneira, o lucro era transformado em renda, e os mercados financeiros se tornaram o lugar onde o valor do trabalho ou da mão de obra era determinado, transformado num valor financeiro que não é outra coisa do que a expressão subjetiva das expectativas de lucros futuros gerados por mercados financeiros que, dessa forma, reivindicam renda. A atual crise financeira assinala o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma unidade de medição do trabalho ou da mão de obra, ao menos no atual fracasso do capitalismo contemporâneo em termos de governança cognitiva. Consequentemente, a crise financeira é também uma crise da valorização capitalista.

IHU On-Line - Como tem aparecido nos debates econômicos a proposta de uma maior intervenção do Estado na economia?

Andrea Fumagalli - É muito divertido o fato de que alguns dos economistas neoliberais que ainda há dois anos se horrorizavam com a ideia de intervenção estatal agora são a favor dela, talvez citando Keynes e/ou Marx. É claro que esse tipo de intervenção estatal é apenas instrumental. Ela segue o princípio da socialização dos prejuízos, a fim de recuperar no futuro a privatização dos lucros. Mas o principal problema é que a intervenção estatal só desempenha o papel de tapar os atuais buracos resultantes da falta de liquidez monetária (escassez de crédito) sem perspectivas de intervir nas razões estruturais da crise.

IHU On-Line - Neste momento de crise, qual a importância da união entre países, como é o caso da União Europeia, Mercosul, etc.?

Andrea Fumagalli - Ela é muito importante. Um dos resultados desta crise é a morte definitiva da soberania do Estado nacional. Só é possível imaginar uma nova governança política supranacional. Naturalmente, essa possibilidade depende das relações dinâmicas entre as mais relevantes áreas do mundo, especialmente do eixo EUA-Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). Quanto à Europa, a crise demonstra as dificuldades do processo de construção da União Europeia econômica.

IHU On-Line - Que cenários de conflitos sociais são abertos pela crise financeira atual?

Andrea Fumagalli - É bastante difícil responder a essa pergunta. Com certeza, essa crise pode ser uma grande oportunidade para os movimentos sociais globais. A razão disso reside no fato de que, no capitalismo cognitivo, não há espaço para uma reforma política institucional que seja capaz de reduzir a instabilidade que o caracteriza. Nenhum New Deal inovador é possível a não ser aquele impelido pelos movimentos sociais e pelas práticas da institucionalidade autônoma mediante a reapropriação de um sistema de bem-estar saqueado por interesses privados e congelado na política pública. Algumas das medidas que podem ser identificadas, desde a regulamentação dos salários baseada na proposta de uma renda básica até a produção com base na livre circulação do conhecimento, não são necessariamente incompatíveis com os sistemas de acumulação e subsunção do capital, como sugeriram vários teóricos neoliberais. De qualquer modo, novas campanhas de conflito social e reapropriação da riqueza comum podem ser iniciadas com a finalidade de solapar a própria base do sistema produtivo capitalista, isto é, a coerção do trabalho ou da mão de obra, a renda como ferramenta de chantagem e dominação de uma classe sobre outra e o princípio da propriedade privada dos meios de produção (ontem eram as máquinas, hoje também é o conhecimento). Em outras palavras, podemos afirmar que no capitalismo cognitivo uma possível conciliação social de origem keynesiana, mas adaptada às novas características do processo de acumulação, é apenas uma ilusão teórica, sendo inviável de um ponto de vista político.

Uma política reformista plenamente desenvolvida (que tende a identificar uma forma de mediação entre o capital e o trabalho que seja satisfatória para ambos), capaz de garantir um paradigma estrutural estável do capitalismo cognitivo, não pode ser delineada atualmente. Assim, estamos num contexto histórico em que a dinâmica social não deixa espaço para o desenvolvimento de práticas reformistas e, acima de tudo, de “teorias” reformistas. O que se segue disso é que, percebendo que é a práxis que orienta a teoria, só o conflito e a capacidade de criar movimentos multitudinários podem permitir – como sempre – o progresso social da humanidade. Só o reavivamento de conflito social forte supranacional pode criar as condições para superar o estado atual de crise. Deparamo-nos com um aparente paradoxo: para tornar possíveis novas perspectivas reformistas e a estabilidade relativa do sistema capitalista, é necessária uma ação conjunta de natureza revolucionária, capaz de modificar os eixos sobre os quais se baseia a própria estrutura de comando capitalista.

Precisamos, portanto, começar a imaginar uma sociedade pós-capitalista, ou, melhor ainda, a reelaborar a batalha pelo bem-estar [welfare] na crise como organização imediata das instituições do comum. Isso não elimina definitivamente as funções da mediação política, mas remove-as definitivamente das estruturas representativas e absorve-as no poder constituinte de práticas autônomas. Em outras palavras, estamos lidando com a transformação do “comunismo do capital” no “comunismo do intelecto geral” como força viva da sociedade contemporânea, capaz de desenvolver uma estrutura de “estar-comum” [commonfare] e de estabelecer-se como uma condição efetiva e real da opção humana pela liberdade e igualdade. Entre o “comunismo do capital” e as instituições do comum não há especulação ou relação linear de necessidade: trata-se, em outras palavras, de reapropriar-se coletivamente da riqueza social produzida, rompendo os dispositivos da subsunção e do comando capitalista na crise permanente.

Em tal processo, o papel autônomo desempenhado pelos movimentos sociais é importante, não só como programa e ação de caráter político, mas também, e acima de tudo, como ponto de referência para as subjetividades, singularidades ou segmentos de classe mais duramente atingidos e fraudados pela crise. A capacidade de subsunção real da vida no processo de trabalho e produção, a difusão de imagens culturais e simbólicas onipresentes com base em elementos do individualismo (começando com o individualismo “proprietário”) e medidas de “segurança” constroem os principais pontos críticos do processo de controle social e cognitivo do comportamento dos trabalhadores e do proletariado. O alcance e a organização de uma subjetividade autônoma, que já vive nas práticas de resistência e produção de uma nova composição de classe, são condições necessárias para desencadear processos conflituosos, capazes de modificar as atuais hierarquias socioeconômicas. Deste ponto de vista, todos os excessos e insurgências que as subjetividades nomádicas conseguem alcançar e animar são bem-vindas. É só dessa maneira, como mil gotas que se encontram para formar um rio ou mil abelhas que formam um enxame, torna-se possível colocar em movimento formas de reapropriação da riqueza e do conhecimento, invertendo a dinâmica redistributiva, forçando os que causaram a crise a pagar por ela, repensando uma nova estrutura do bem-estar social e comum, imaginando novas formas de auto-organização e produção compatíveis com o respeito pelo meio ambiente e pela dignidade dos homens e mulheres que habitam este planeta.

A crise e os contornos de um ''socialismo totalitário do capital, por Carlo Vercellone

" O economista Carlo Vercellone não crê que a crise atual possa desembocar num novo New Deal, capaz de reconciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento em torno de um novo compromisso capital-trabalho "

Carlo Vercellone : A crise e os contornos de um "socialismo totalitário do capital"
Por: Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger, 20/07/2009

Na opinião do economista italiano, residente na França, Carlo Vercellone, “pode-se afirmar que a própria noção de capital imaterial é um sintoma da crise da categoria de capital constante que se afirmou com o capitalismo industrial, em que o capital constante se apresentava como trabalho morto, cristalizado nas máquinas, impondo ao trabalho vivo sua dominação”. Na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail, ele explica que “a força de trabalho, ou a intelectualidade difusa, não podem ser consideradas, por definição, como um ativo negociável de uma empresa (contrariamente a uma máquina ou a uma patente, exceto se a força de trabalho fosse reduzida à escravidão). A valoração do capital intelectual e, portanto do trabalho, não pode, pois, ser senão a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda. Isso contribui para explicar por que as finanças desempenham um papel chave no capitalismo cognitivo. Mas este fato contribui também para explicar por que a sucessão de crises financeiras e econômicas graves, à qual assistimos, não foi simplesmente o produto da má regulação das finanças”. Ele critica “a tese dominante, segundo a qual a crise atual seria de origem financeira que só teria afetado, num segundo tempo, a economia dita real”.

Mestre de conferências na Universidade de Paris I Pantheón-Sorbonne, Carlo Vercellone é membro da Unidade de Pesquisas Matisse-Isys (http://matisse.univ-paris1.fr). Especialista da história econômica da Itália, é o organizador da obra coletiva Sommes-nous sortis du capitalisme industriel? (Paris: La Dispute, 2003). Vercellone é autor de Accumulation primitive du capital (1861-1980), Industrialisation et rapport salarial: une application au cas italien (Paris: L'Harmattan, 1999).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Com a crise atual, pode-se considerar que as finanças são uma unidade de medida do trabalho e do capital?

Carlo Vercellone - Esta questão me permite esclarecer uma divergência com outras concepções do capitalismo cognitivo, segundo as quais as finanças seriam um mecanismo essencial de regulação das externalidades e da crise de medida do trabalho e do capital. Melhor ainda, segundo alguns autores, as finanças se tornariam uma esfera diretamente produtiva na medida em que o valor emergiria da própria esfera da circulação monetária. Minha posição em relação a esse tipo de interpretação foi sempre muito crítica e contribui para explicar as razões pelas quais eu não creio que a crise atual possa desembocar num novo New Deal, capaz de reconciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento em torno de um novo compromisso capital-trabalho.

Eu me explico. O capitalismo cognitivo vai de par a par com uma crise das categorias fundamentais da economia política: o trabalho, o capital, o valor (voltarei mais tarde sobre esta categoria). No que concerne ao trabalho, o crescimento da sua dimensão imaterial e cognitiva marca, sem dúvida, uma crise de sua medida. O trabalho cognitivo, com efeito, se apresenta, por essência, como a combinação complexa de um trabalho intelectual de reflexão, de acerto, de partilha e de elaboração dos saberes, que se efetua tanto em quantidade como no quadro do trabalho imediato de produção. Nesse quadro, o trabalho mensurado com o tempo passado e certificado na empresa, frequentemente não é mais do que uma fração do tempo social efetivo de trabalho. Esta crise de medida – e este ponto é essencial – não afeta, portanto, em nada, a meu ver, a tese marxista, segundo a qual o trabalho continua sendo a única fonte do valor e da mais-valia. A crise de medida do trabalho está, aliás, estreitamente associada àquela da categoria de capital que, como se sabe, é mais identificada com a noção de capital imaterial ou de capital humano.

Ora, esta identificação corresponde, a meu ver, a um verdadeiro oximoro. Por que um oximoro?

Porque a significação primeira do que se chama capital imaterial corresponde realmente, no essencial, às qualidades intelectuais e criadoras incorporadas na força de trabalho. Ele expressa, então, para retomar uma expressão de Tronti, a maneira pela qual o “trabalho vivo como não capital” desempenha agora um papel hegemônico em relação à ciência e aos saberes codificados, incorporados no capital fixo e na organização empresarial das firmas.

A inteligência difusa ou coletiva

Nesse sentido, pode-se afirmar que a própria noção de capital imaterial é um sintoma da crise da categoria de capital constante que se afirmou com o capitalismo industrial, em que o capital constante se apresentava como trabalho morto, cristalizado nas máquinas, impondo ao trabalho vivo sua dominação. Malgrado a torção introduzida por termos, como capital intelectual, capital intangível ou ainda capital humano, este capital é, pois, na realidade, o que nós chamamos a intelectualidade difusa ou ainda a inteligência coletiva. Este capital escapa, portanto, a toda medida objetiva. Compreende-se, desde logo, uma das razões que, na origem da formidável ascensão do “goodwill”, esteve no cerne do rápido desenvolvimento das bolhas financeiras, e depois de sua explosão na crise. Pode-se, portanto, considerar o “goodwill”, como uma medida do trabalho e do capital? A resposta é evidentemente não, sem por isso precisar atingir a crise atual. O valor desse capital na bolsa é fundamentalmente fictício, na medida em que não corresponde sequer a uma duplicata do capital real. Com efeito, a força de trabalho, ou a intelectualidade difusa, não podem ser consideradas, por definição, como um ativo negociável de uma empresa (contrariamente a uma máquina ou a uma patente, exceto se a força de trabalho fosse reduzida à escravidão). A valoração do capital intelectual e, portanto, do trabalho não pode, pois, ser senão a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda. Isso contribui para explicar por que as finanças desempenham um papel chave no capitalismo cognitivo. Mas este fato contribui também para explicar por que a sucessão de crises financeiras e econômicas graves, à qual assistimos, não foi simplesmente o produto da má regulação das finanças. Ao contrário, como o mostrou com força Gorz, esta dinâmica exprime “muito simplesmente a dificuldade intrínseca que faz funcionar o capital intangível como um capital que faz funcionar o capitalismo dito cognitivo como um capitalismo”. É o que nos mostra a análise da origem, do sentido e dos riscos da crise econômica e financeira atual.

IHU On-Line - O capitalismo está em crise, ou nós estamos simplesmente vivendo uma crise financeira? O que caracteriza este momento? Será que ele também marca a crise da teoria neoliberal?

Carlo Vercellone - Sou resolutamente critico em face da tese dominante, segundo a qual a crise atual seria uma crise de origem financeira que só teria afetado num segundo tempo a economia dita real. Esta tese encontra, aliás, duas formulações principais, cujos limites analíticos convêm sublinhar, bem como suas implicações políticas.

A primeira formulação corresponde à concepção dominante compartilhada pela maioria dos economistas mainstream. Estes, após terem defendido durante anos as virtudes do rigor orçamentário, se converteram rapidamente em fervorosos defensores de políticas keynesianas de retomada e de salvamento do sistema financeiro. Segundo esta primeira formulação, a crise atual corresponderia a uma espécie de acidente de percurso no desenvolvimento das finanças liberalizadas e mundializadas, cujo balanço permaneceria fundamentalmente positivo. A crise seria essencialmente o efeito de uma série de disfunções técnicas e de riscos morais das finanças, que teria desestabilizado a regulação neoliberal de um sistema econômico intrinsecamente sadio. A terapia anticrise consistiria, portanto, em intervenções excepcionais e transitórias de retomada, associadas a medidas de moralização e de reregulamentação parcial das finanças na linha dos acordos de Basiléia-II. De nenhum modo, seria questão de recolocar em causa os pilares da regulação neoliberal, notadamente por aquilo que se refere à relação salarial e ao desmantelamento das instituições do Welfare-State.

Um “socialismo neoliberal” do capital

Temos aí o que se pode chamar um keynesianismo “bastardo”, ou melhor, um “socialismo neoliberal” do capital, que traduz bem a orientação das políticas econômicas adotadas pela maioria dos governos, notadamente na Europa. A esta concepção se adapta bem o célebre adágio “é preciso que tudo mude, a fim de que nada mude”. A razão desta estratégia não depende somente de uma adesão ideológica obstinada ao neoliberalismo. Ela exprime, a meu ver, de maneira mais fundamental, a dificuldade de um processo de autorreforma do capital, capaz de implantar um novo New Deal, e isso por razões em grande parte estruturais referentes à reprodução do capitalismo cognitivo e à sua incapacidade de reativar uma lógica de crescimento, capaz de integrar, pelo menos em parte, os interesses das classes subalternas. Voltaremos a isso. Como prova, basta pensar nas recentes declarações do principal economista do FMI, quando ele apela a refletir hoje na “implantação estrutural de reformas para diminuir os déficits orçamentários no receio de que os mercados (financeiros) não enlouqueçam ante a decolagem do endividamento público”, esquecendo que este último justamente se desenvolveu para voar ao seu socorro.

O conflito entre a vocação rentável do capitalismo financeiro e o “bom” capitalismo produtivo

A segunda formulação desta tese inspira-se numa concepção autenticamente keynesiana, ou marxo-keynesiana. Para esta análise, o sentido e o cacife da crise atual se encontraria no conflito entre a vocação rentável do capitalismo financeiro e o “bom” capitalismo produtivo, portador, este, de uma lógica de acumulação favorável ao crescimento da produção e do emprego. Desta interpretação resulta, então, a proposição de uma espécie de compromisso “neorricardiano” entre salário e capital produtivo contra o poder das finanças. O compromisso deveria permitir restabelecer a hegemonia do capitalismo empresarial da época fordista e uma repartição menos inigualitária da renda. Nessa base, nossas economias poderiam reencontrar - assim nos dizem - as condições de um crescimento próximo do pleno emprego, e tudo isso num contexto de substancial continuidade com as modalidades fordistas de organização do trabalho e de regulação da relação salarial.

Esta grade de leitura nos parece errônea por três razões estreitamente interligadas:

1ª) a denúncia do papel perverso das finanças é desconectado de uma análise das profundas transformações da organização social da produção e da demanda social. Estas não estão mais fundadas na produção de bens padronizados, mas sobre o lugar cada vez mais central do conhecimento e do imaterial, e notadamente do que eu chamo de produções do homem para o homem (saúde, educação, cuidados, pesquisa). É o esquecimento dessas dimensões essenciais que pode nutrir a ideia errônea, segundo a qual a saída da crise se encontraria num relançamento keynesiano do modelo fordista do pleno emprego e da produção/consumo de massa.

2ª) ela nega a importância das mutações que, neste quadro, conduziram ao esgotamento do papel hegemônico da lógica do capitalismo industrial e a uma vocação especulativa e rentável mais pronunciada do próprio capital produtivo. Nesta evolução, a financeirização do capital produtivo não é, aliás, senão uma das expressões de uma verdadeira multiplicação das formas rentáveis de valorização do capital (patentes, marcas, etc.).

3ª) ela faz da crise atual o simples resultado da repetição, desde os anos 1980, de crises financeiras graves, obedecendo a uma lógica cíclica e repetitiva, endógena às próprias finanças e à sua tendência de se autonomizar e a desestruturar do exterior “a economia dita real”.

A compenetração entre capital financeiro e capital produtivo

Certamente, não se trata aqui de negar a autonomia relativa e o poder sistêmico de que dispõem as finanças. Um poder que se manifesta tanto durante as fases de crescimento, quando ele se apropria de uma parte exorbitante dos lucros, como nas fases que seguem à explosão das bolhas especulativas. Neste quadro, a ameaça de transformar uma crise local numa crise global permite, com efeito, às finanças tomar como refém o conjunto das instituições, obtendo dos bancos centrais e dos governos concessões formidáveis e quase sem condições. No entanto, insistir nas finanças como se se tratasse de um poder autônomo quase absoluto, tende a fazer esquecer a compenetração entre capital financeiro e capital produtivo e as outras causas socioeconômicas que estão na origem da crise sistêmica do capitalismo contemporâneo.

Este tipo de concepção não chega, por exemplo, a ver como a dinâmica que conduziu da crise da bolha da internet em 2000 à crise dos subprimes não se encontra na simples repetição, de maneira idêntica, de ciclos especulativos ligados à lógica autônoma das finanças. Apesar de certos traços comuns, uma análise atenta da passagem histórica da “new economy” à crise dos subprimes permite mostrar o aprofundamento de certo número de contradições maiores que vão afetar, na economia dita real, o desenvolvimento do capitalismo cognitivo. Contradições essas que dizem respeito tanto à regulação da relação capital-trabalho, como à questão dos mercados e das finalidades sociais da produção.

É preciso recordar, nesse contexto, como o aumento nos preços das ações na bolsa Nasdaq tinha sido saudado como o sinal anunciador do milagre da new economy. Diante da crise dos mercados e da competitividade de setores da velha economia material fordista, a economia americana, graças à internet e às novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC), era vista como tendo encontrado o caminho de um novo crescimento potencialmente inesgotável e capaz de lhe restituir uma posição hegemônica na economia mundial. Ora, a explosão da bolha da internet e dos valores da bolsa Nasdaq, em março de 2000, veio justamente mostrar o fim dos mitos da new economy. Por quê? Porque o financiamento dos starts-up e o enorme esforço de investimento nos TIC, para criar novos sites comerciais, logísticas proprietárias, etc., se traduziu por uma formidável crise de superprodução e de superinvestimento, sem chegar a criar mercados comerciais que permitissem valorizá-los.

Esta crise tem uma importância crucial na história do capitalismo cognitivo

Esta crise tem uma importância crucial na história do capitalismo cognitivo.
A crise da bolha da “new economy” marca, com efeito, limites estruturais que o capital encontra em sua estratégia lucrativa, visando a submeter a economia do imaterial e da internet à lógica comercial e do lucro. Na web, os princípios da gratuidade e da auto-organização em rede continuam predominando, e isso a despeito das tentativas de instaurar barreiras comerciais ao acesso e de reforçar os direitos de propriedade intelectual. Ela mostra, ao mesmo tempo, a dificuldade de o capital afirmar sua hegemonia na organização social da produção. Em particular, a ascensão das redes de troca e de produção não comercial dá prova de uma eficácia econômica superior à do setor privado. O modelo do software livre e de Linux se afirma como um princípio de coordenação e de produção de saberes alternativo tanto à empresa como ao mercado, desestabilizando o monopólio da Microsoft e a estratégia capitalista de privatização do conhecimento e dos bens informacionais.

Nesse contexto de impasse da new economy, o governo americano e o Federal Reserve (FED ) já se encontram confrontados, em 2000, ante o risco de uma depressão maior. De onde a tentativa de reativação da economia por uma política de taxas de juro muito baixas que, para manter o consumo, desconectava a despesa e a renda através da expansão do crédito, notadamente o hipotecário. Era possível fazer outra opção, por exemplo, a de uma reforma da política de rendas, permitindo um crescimento dos salários e uma redução das formidáveis desigualdades sociais que se cruzaram desde os anos 1980.

Mas por que esta hipótese – embora visada – foi então rapidamente descartada? Uma das principais razões que continua atual é, a nosso ver, a seguinte: a precarização constitui, no capitalismo cognitivo, uma condição essencial para assegurar o controle de uma força de trabalho que é cada vez mais autônoma no plano da organização da produção. A opção de favorecer o desenvolvimento do endividamento massivo dos negócios parece, em troca, permitir ao capital combinar dois objetivos do ponto de vista da regulação da relação salarial.

O primeiro é o de estimular a demanda pelo crédito, assegurando ao capital financeiro encontrar, pelo menos no começo, investimentos muito rentáveis e novas formas de retirada antecipada da mais-valia.; o segundo consiste na maneira pela qual o mito neoliberal da “sociedade de proprietários”, associada ao crescimento exponencial da dívida privada das transações individuais ou familiares permite forjar, junto aos trabalhadores, uma subjetividade dependente e submetida ao capital. É assim que à crise da “new economy” sucede, a partir de 2002, a formação da nova bolha especulativa, dita dos subprimes.

A construção civil e a economia do imaterial

O crescimento americano é puxado, durante este período, pela ação conjunta do setor mais tradicional da economia material (a construção civil) e do setor, sob muitos aspectos o mais parasitário, da economia do imaterial. Eu me refiro ao desenvolvimento dos serviços financeiros que se auto-alimentam graças à titulação e a toda uma parafernália de inovações financeiras que parecem permitir uma diluição infinita dos riscos.

No total, a financeirização e, mais em geral, o desenvolvimento da localização da renda são, em grande parte, a consequência e não somente a causa das contradições inerentes à lógica de regulação do capitalismo cognitivo. Este ponto é também essencial para compreender o sentido e as causas da abertura da crise atual, que seria errôneo considerar essencialmente como uma crise de origem financeira. Numerosos fatores econômicos, sociais e ecológicos “reais” de uma crise global eram visíveis bem antes da crise financeira. Eles permitem explicar o estouro e, ao mesmo tempo, a dificuldade de pensar a possibilidade de uma saída da crise por cima, sem uma ação que vise a reduzir a um lugar secundário o papel do lucro e das relações comerciais.

Lembro apenas alguns dos fatores mais importantes.

A crise ecológica, da qual uma de suas manifestações se manifesta, aliás, entre 2006-2007, no aumento do preço da gasolina e dos alimentos que desempenham um papel central no consumo dos bens domésticos, notadamente daqueles mais pobres e mais endividados. Esta evolução, associada, a partir de 2005, à alta das taxas de juro, condena, de fato, uma grande parte dos negócios a uma situação de insolvabilidade e contribui para desencadear a crise dos subprimes e o desmoronamento do setor imobiliário. Entretanto, mais fundamentalmente, a crise ecológica marca, na escala planetária, os limites estruturais do modelo liberal produtivista. Desse ponto de vista, uma política de saída da crise não pode, pois, de nenhuma forma, basear-se exclusivamente num plano de retomada do consumo privado e dos negócios privados. Ela requer, antes, uma verdadeira socialização do investimento nas atividades que permitam repensar o urbanismo, a agricultura, a promoção da economia de energia e que, por natureza, escapam, em grande parte, à lógica comercial e mercadológica.

A possibilidade de uma política de retomada da economia fundada na lógica mercadológica se encontra, de maneira mais geral, presa à armadilha de outros obstáculos. De uma parte, como vimos, a new economy é incapaz de tomar o lugar da velha economia fordista. A explosão da bolha especulativa da internet já mostrou a impossibilidade, da parte do capital, de integrar a economia do imaterial e do conhecimento numa dinâmica de crescimento capaz de assegurar, numa nova base, a expansão das saídas mercadológicas.

De outra parte, os setores saídos da velha economia fordista se encontram numa fase de declínio estrutural, torturados entre a situação dos mercados e a concorrência dos países emergentes, como o mostra hoje a crise dramática da indústria automobilística encarnada pela falência do símbolo da indústria americana, a General Motors. Sua retomada se chocaria, aliás, com coerções ecológicas incontornáveis.

Ora, os únicos atores em que as necessidades e a demanda social estão em contínua expansão correspondem ao que se chamam produções do homem para o homem (saúde, educação, pesquisa, cuidados às pessoas), asseguradas tradicionalmente na Europa, pelos serviços coletivos do Welfare-State . Este elemento contribui para explicar a pressão extraordinária exercida pelo capital para privatizar ou, em todo o caso, submeter à lógica mercadológica esses serviços coletivos, e isso muito mais por seu papel estratégico no crescimento da demanda social do que pelo controle biopolítico da população. No entanto, esse tipo de atividade não pode ser submetido à racionalidade econômica do lucro e à lógica mercadológica a não ser ao preço de um esbanjamento de recursos e desigualdades sociais profundas que, por acréscimo, correria o risco de desestruturar as forças criadoras de base de uma economia fundada no papel motor do saber e de sua difusão.

Três principais argumentos reivindicam esta tese:

O primeiro está ligado ao caráter intrinsecamente cognitivo, afetivo e comunicativo dessas atividades, nas quais o trabalho não consiste em agir sobre a matéria inanimada, mas sobre o próprio homem, numa relação de co-produção de serviços.

O segundo argumento se refere à impossibilidade de elevar a produtividade e a rentabilidade dessas atividades, mensurando-as por meio de critérios quantitativos próprios à administração das empresas, a não ser em detrimento da qualidade que caracteriza a eficácia de uma relação de serviços em setores, como a saúde, o ensino e a transmissão/produção de conhecimentos.

O terceiro está ligado às distorções profundas que a aplicação do princípio da demanda solvável introduziria na alocação dos recursos e no direito ao acesso a esses bens comuns. Essencialmente, a produção do comum se funde, efetivamente, com a gratuidade e com o livre acesso. O financiamento das produções do homem para o homem não pode, pois, ser baseado no princípio da demanda privada solvável, mas deve repousar sobre o preço coletivo e político representado pelo lado fiscal, a cotização social ou por outras formas de mutualização real dos recursos.

IHU On-Line - Quais são as principais diferenças entre a crise atual e a crise de 1929?

Carlo Vercellone - Todos esses elementos contribuem também para explicar certas diferenças maiores entre o sentido e os cacifes da grande depressão dos anos 1930 e a crise atual. A crise de 1929 se apresenta a posteriori como uma crise de crescimento da lógica do capitalismo industrial, fundada sobre a racionalização tayloriana da produção e a integração da reprodução da força de trabalho à lógica mercadológica. Ela resulta, no essencial, da defasagem entre o desenvolvimento dos princípios da produção de massa e um modo de regulação concorrencial da relação salarial que impede a rápida expansão do consumo de massa. O cacife principal de uma saída da crise encontrava-se, então, na criação de instituições (as Convenções Coletivas, o Estado-providência, etc.) que permitissem uma progressão dos salários próxima àquela da produtividade. Dessa maneira, podia realizar-se o sonho de Henry Ford, aquele de uma classe operária que se torna o principal comprador dos bens de consumo duráveis que ela produz. Consistindo a racionalidade econômica do capital industrial em produzir sempre mais mercadorias com menos tempo. Então, com custos unitários e de preços decrescentes, ela poderá encontrar uma força progressiva, integrando estreitamente o assalariado na dinâmica da acumulação do capital, satisfazendo dessa maneira uma massa crescente de necessidades, pouco importando se verdadeiras ou supérfluas. Esta força progressiva do capital, fundada sobre sua capacidade de integrar a classe operária no interior de sua lógica de desenvolvimento, foi a base do que a escola da regulação chamou de compromisso fordista: os sindicatos aceitam a racionalização tayloriana e o monopólio do patronato sobre a organização do trabalho. Em contrapartida, os trabalhadores obtêm uma progressão dos salários que lhes permite o acesso ao consumo de massa.

Esta dialética capital-trabalho é, no entanto, rompida no capitalismo cognitivo. A crise atual não é uma crise de crescimento do capitalismo cognitivo. Ela exprime, de maneira mais fundamental, o caráter inconciliável do capitalismo cognitivo com as condições sociais necessárias ao desenvolvimento de uma economia fundada no conhecimento, bem como à preservação do equilíbrio ecológico do planeta. Para citar uma passagem incisiva e profética de André Gorz em O Imaterial (São Paulo: Annablume, 2005), ela exprime a maneira com que “O capitalismo... chegou em seu desenvolvimento das forças produtivas a uma fronteira, passada a qual ele não pode haurir plenamente uma parte de suas potencialidades a não ser passando para uma outra economia.” Esta contradição exprime em termos marxistas a crise da racionalidade econômica do capital encarnada pela lei do valor, pensada como a relação social que faz da lógica da mercadoria o critério chave e progressivo da produção de valores de uso e de satisfação das necessidades.

Finalmente, para retomar uma formulação de Gramsci, a crise atual é “uma grande crise, um momento trágico, no qual o antigo morre, o novo não chega a ver a luz do dia, e nesse claro-obscuro surgem os monstros”. Mas, se nada será como antes, é preciso admitir a dificuldade de definir com precisão os cenários de uma eventual saída da crise. De qualquer maneira, é extremamente difícil compartilhar da hipótese, segundo a qual a crise atual poderia conduzir o capital a tomar consciência da necessidade de um novo New Deal, capaz de conciliar o capitalismo cognitivo e a economia fundada no conhecimento, encontrando uma solução viável aos problemas inerentes simultaneamente à desigualdade na repartição da renda, à insuficiência da demanda, à crise ecológica e à instabilidade das finanças. Mais precisamente, a possibilidade de um novo New Deal, de um novo compromisso capital-trabalho só se choca contra o muro representado pelo poder das finanças. Ela também tropeça em dois obstáculos maiores que traduzem, como vimos, a expansão da força progressiva do capital e a crise da lei do valor.

O primeiro está ligado à maneira com que um eventual reforço das garantias do Welfare State, reduzindo de maneira substancial a sujeição à relação salarial, comportaria para o capital um risco maior, o de desestabilizar profundamente os mecanismos de controle do trabalho cognitivo fundados em grande parte na precariedade. Poderia resultar no desenvolvimento de conflitos, confluindo não somente sobre o plano de repartição da renda, mas também, de maneira mais fundamental, sobre a própria definição da organização e das finalidades sociais da produção.

O segundo obstáculo depende da maneira como, pelo menos nos países desenvolvidos, a maior parte das necessidades que a produção é suscetível de satisfazer se encontra fora das atividades nas quais a racionalidade econômica do capital pôde desempenhar, no capitalismo industrial, um papel progressivo.

É por todas essas razões que o retorno pela força da intervenção do Estado, como regulador macroeconômico e salvador em último recurso dos desequilíbrios do capital, não nos parece ser o prelúdio de um novo New Deal. Esta evolução parece, antes, delinear os contornos de um “socialismo totalitário do capital”, posto a serviço da continuidade de políticas neoliberais de expropriação do comum e de expansão parasitária da esfera mercadológica. Nada é, no entanto, inelutável. Apesar da sua dinâmica devastadora e os riscos de implosão que ela comporta, a bifurcação histórica aberta pela crise atual se apresenta como um processo complexo, aberto e profundamente conflituoso, que pode dar lugar a evoluções que se processem em direções opostas.

Leia mais...

>> Carlo Vercellone já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line.
Entrevistas:
* Um panorama sobre a nova divisão cognitiva do trabalho. Publicada na IHU On-Line número 161, de 24-10-2005.

* É na reversão das relações de saber e poder que se encontra o principal fator da passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo. Publicada na IHU On-Line número 216, de 23-04-2007.

Capitalismo cognitivo. A financeirização, em crise, é a sua forma econômica real , por Gigi Roggero

" Na visão de Gigi Roggero, a financeirização constitui a forma econômica real da produção e está conexa às transformações produtivas e do trabalho das últimas décadas, o que ele entende como a afirmação de um “capitalismo cognitivo”. "

Gigi Roggero: Capitalismo cognitivo. A financeirização, em crise, é a sua forma econômica real
Por: Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger , 20/07/2009

A crise “longe de estar confinada a uma fase descendente do ciclo e de preparar uma nova expansão, ou então, ao tornar-se impulsionadora de uma dinâmica de crescimento, não é mais somente um dado estrutural do desenvolvimento capitalista, mas se torna seu elemento permanente e insuperável”. A opinião é do professor e economista Gigi Roggero. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line ele defende que “a financeirização – longe de contrapor-se à economia ‘real’ – é a forma da economia capitalista apta para exercer o comando sobre o trabalho cognitivo e sobre a produção do saber vivo”. Ao analisar a crise financeira mundial, Roggero considera que “a salvação dos bancos por parte do Estado só demonstra aquilo que sustentamos até agora, ou seja, a íntima articulação do público e do privado no desenvolvimento capitalista”. Segundo ele, “a crise é, de fato, um processo profundamente ambivalente, no qual convivem extraordinárias oportunidades e inquietantes riscos, instâncias de transformação e lutas sociais com crescentes formas de racismo e reação”.

Gigi Roggero é formado em História Contemporânea pela Università degli Studi di Torino. É coautor de Futuro Anteriore. Dai "Quaderni Rossi" ai movimenti globali: ricchezze e limiti dell'operaismo italiano (Roma: DeriveApprodi, 2002). Trabalha no campo da pesquisa social. É doutorando no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Università della Calabria.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que muda no processo econômico mundial com a crise financeira internacional?

Gigi Roggero - Partamos da definição: estamos dentro de uma crise econômica global, certamente a maior após 1929. Isso significa, de um lado, que o mundo se tornou um só, que lá onde as coordenadas espaço-temporais se tornam globais é impossível pensar em crises locais circunscritas e independentes; e de outro, que a crise financeira é imediata à crise econômica. Ou melhor, que estourou completamente a dicotomia – ainda cara a muitas esquerdas – de economia real versus economia financeira. Hoje nossas vidas estão inteiramente no processo de financeirização: quando usamos o cartão de crédito ou o cheque especial, quando recorremos a empréstimos para ter acesso a necessidades fundamentais (casa, formação, mobilidade, e principalmente a saúde), quando uma parte dos salários é paga em stock option ou as pensões se tornam fundos de investimentos.

Para a economia clássica e moderna, a financeirização e a crise intervinham no final do ciclo, após a expansão da economia real ligada à afirmação de um modelo produtivo. Hoje, a financeirização não só recobre o ciclo econômico inteiro, mas põe em discussão a própria categoria de ciclo. Esta categoria era ligada a períodos médios e longos de algumas décadas. Agora, pensamos somente na última dezena de anos: tivemos o desmoronamento dos mercados do Sudeste Asiático em 1997, o do índice Nasdaq e da new economy em 2000, a crise do sistema do débito e dos subprime, desde 2007. Ou então, o acontecimento de crises econômico-financeiras de âmbito mundial em períodos totalmente breves, a ponto de tornar impossível reconstruir, mesmo que somente a posteriori, a dinâmica cíclica. A crise, longe de estar confinada a uma fase descendente do ciclo e de preparar uma nova expansão, tornando-se impulsionadora de uma dinâmica de crescimento, não é mais somente um dado estrutural do desenvolvimento capitalista, mas torna-se seu elemento permanente e insuperável.

IHU On-Line - Quais as principais transformações que a crise internacional tem provocado no mundo do trabalho?

Gigi Roggero - Inverterei o ponto de vista: a questão é, então, de que forma o trabalho determinou a crise global? A financeirização não é, de fato, um processo externo à produção: constitui, ao contrário, sua forma econômica real. É, portanto, estreitamente conexa às transformações produtivas e do trabalho das últimas décadas, que internamente na Universidade Nômade definimos como o afirmar-se de um “capitalismo cognitivo” – categoria que usamos como conceito explorador e amparo político, embora não como postulado. É bom esclarecer: quando falamos de cognição do trabalho, não entendemos a intelectualização linear da força de trabalho como uma dinâmica progressiva que conduzirá objetivamente à libertação do capitalismo ao desaparecimento do trabalho industrial. A cognição é, em vez disso, um processo de transformação complexa, filigrana de “iluminação geral” por meio da qual se pode ler toda a composição do trabalho e os novos processos de hierarquização. Não é, realmente, a mesma coisa trabalhar numa fábrica ou num centro de pesquisa universitário. Todavia, é comum a linha em torno da qual se organiza a nova divisão cognitiva do trabalho, ou seja, a finalização à produção de saberes, à inovação permanente e à valorização do desenvolvimento tecnológico. Nas novas coordenadas espaço-temporais globais, também a clássica imagem da divisão internacional do trabalho – calcada na dialética entre centro e periferia – entra em crise: de São Paulo a Johanesburgo, de Xangai a Berlim, de Hyderabad ao Silicon Valley se pode observar – com gradações extremamente diferentes – todo o espectro das formas contemporâneas da produção e do trabalho.

Neste processo de transformação complexa, no qual os saberes se tornam, ao mesmo tempo, recurso produtivo central e meio de produção, mudam as formas de extração do mais valor (plusvalore – mais valia). Em resumo, o capital deve renunciar à tendência de organizar o ciclo produtivo num patamar hierárquico superior, para limitar-se a capturar os processos de auto-organização da cooperação social, ou então, àquilo que chamamos a produção do comum. Se pensarmos, para limitar-se a um exemplo conhecido, na internet, o que é a web 2.0, senão a captura capitalista de um processo cooperativo que não pode mensurar e que a excede estruturalmente? Poderemos, então, dizer que a financeirização – longe de contrapor-se à economia “real” – é a forma da economia capitalista apta ao comando sobre o trabalho cognitivo e sobre a produção do saber vivo. Não é por acaso que círculos próximos ao The Economist tenham proposto recentemente a fórmula “comunismo do capital”. É, em outros termos, a captura e a transfiguração do comum no signo da renda, entendida – marxianamente – como o poder de apropriação de uma parte crescente dos valores criados pela cooperação social sem uma intervenção direta do capital. Carlo Vercellone, da rede Universidade Nômade, fala de um tornar-se renda do lucro. Isso significa que, diversamente de sua definição clássica, hoje a renda comanda o trabalho.

IHU On-Line - Como a crise internacional tem sido discutida pelos membros da Universidade Nômade? Qual tem sido o senso comum?

Gigi Roggero - Um primeiro fruto importante da discussão coletiva da Universidade Nômade está coletado no livro organizado por Andrea Fumagalli e Sandro Mezzadra, intitulado Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Ombrecorte, 2009). Não estamos interessados na “batalha das ideias” ou na elaboração de análises desarticuladas pelos processos de organização. O que produzimos na Universidade Nômade é uma prática teórica. Em particular, quando os saberes se tornam um campo de batalha central na luta de classes em plano global, uma experiência como a da Universidade Nômade não pode ser pensada como uma simples rede intelectual, deve tornar-se uma instituição política autônoma e, em parte, completamente dentro dos processos de conflito, organização e transformação que analisa. Não criar senso comum, mas tornar-se lugar comum. Deste ponto de vista, não há da nossa parte nenhuma exaltação ingênua da mudança epocal que estamos vivendo. A crise é, de fato, um processo profundamente ambivalente, no qual convivem extraordinárias oportunidades e inquietantes riscos, instâncias de transformação e lutas sociais com crescentes formas de racismo e reação.

Sem dúvida, acabou finalmente a ideia de que o socialismo tem a tarefa histórica de salvar o capitalismo de suas crises cíclicas, superando dialeticamente a endêmica irracionalidade por meio de uma racionalidade superior do desenvolvimento, ou, em outros termos, encarregando-se de realizar as promessas de progresso que o capitalismo não está estruturalmente em condições de manter. Portanto, concluiu-se, felizmente, a época na qual socialismo e capitalismo se espelhavam na presumida objetividade das hierarquias do trabalho, da técnica e da produção. O “comunismo do capital” deve capturar continuamente a produção do comum. Mas o comum não é realmente a inversão dialética e especular do “comunismo do capital”. Ele é, ao mesmo tempo, a livre organização da potência do trabalho vivo, e a destruição dos dispositivos da captura capitalista. O comum não está inscrito no progresso racional da história, mas nos conflitos e nas práticas cooperativas da nova composição do trabalho global. É por isso que, na profunda ambivalência da crise, não somos guiados pelo otimismo da vontade, mas movidos pelo otimismo da razão.

IHU On-Line - Como a crise da economia global se relaciona com a crise da universidade?

Gigi Roggero - No interior do projeto transnacional edu-factory (www.edu-factory.org), falamos de uma dupla crise, para evidenciar precisamente o entrelaçamento, no plano global, entre crise econômica e crise da universidade. Esta última significa, por um lado, crise da dialética entre público e privado. A assim dita privatização da universidade, de fato, não é simplesmente a imissão de fundos privados em instituições que primeiro eram públicas nem depende do estatuto jurídico. Descreve, em vez disso, o processo da própria universidade de tornar-se privada, em seu dever de raciocinar em termos de custos e benefícios, de input e output, de lucro e renda. As agências de rating, por exemplo, se tornam um índice de mensuração do valor das instituições acadêmicas no mercado global da formação. A privatização da universidade, de resto, acompanha a financeirização do welfare. Nos Estados Unidos, o empréstimo é um canal de acesso à instrução superior. Os estudantes acumulam, assim, muitas dezenas de milhares de dólares de débito para terminar o próprio percurso de estudos, vendo preventivamente, reduzido o próprio salário real, ou seja, antes que seu salário seja efetivamente recebido. Por outro lado, a crise da universidade significa o fim da universidade moderna como lugar de construção da cultura nacional. A global university é parte da dupla crise. Das “ruínas da universidade” – para citar um conhecido livro de Bill Readings, da metade dos anos 1990 – não saiu um novo modelo de universidade do capital global. Também neste caso, a crise se tornou elemento permanente.

IHU On-Line - Qual o papel da universidade neste momento de crise? Quais os limites e as possibilidades em relação à produção de conhecimento que pode contribuir para a solução dos problemas econômicos mundiais?

Gigi Roggero
- Como argumentei num recente livro meu La produzione del sapere vivo (A produção do saber vivo, Ombrecorte 2009), não existe uma crise da universidade fora da crise econômica. A crise é, de fato, também crise da medida do trabalho cognitivo. A universidade perde centralidade, torna-se um dos lugares de criação de uma medida artificial dos saberes, de certificação do skill [perícia], onde isso é, atualmente, desconexo da concreta atividade desenvolvida. A quantificação dos saberes, ou seja, a imposição da lei do valor, é inteiramente contra a qualidade. É a redução do saber vivo ao saber abstrato. A universidade não pode, por conseguinte, intervir numa crise da qual é intimamente parte. De resto, a organização disciplinar (e seus novos códigos e limites, como a inter ou multidisciplinaridade tão difusa na academia anglo-saxônica) está completamente falida, serve somente para reproduzir um poder parasitário. Recentemente, saiu um artigo de importantes economistas que explicam por que a disciplina econômica não só não esteve em condições de prever o que está acontecendo, mas não está estruturalmente em condições de fazê-lo. Dessa forma, podemos jogá-la fora! E o mesmo poderemos dizer das outras disciplinas.

Eis o núcleo radical a captar: o que está em crise é o estatuto epistemológico do saber e sua organização. E nós também quisemos esta crise. Os conflitos contra a privatização e a global university não podem sentir nenhuma nostalgia pelo público e pela academia nacional. Está aqui a importância do movimento da “onda anômala” na Itália. Aquela que chamamos de “autorreforma da universidade” não é um cahier de doléance [caderno de queixas] ou um elenco de propostas a submeter aos indivíduos da representação: é a afirmação da não representabilidade, é a prática constituinte, é a imediata organização de institucionalidade autônoma. E é por isso que estou extraordinariamente interessado no projeto de acesso massificado dos negros na universidade brasileira. Enquanto foi determinado também pelas lutas e pelos movimentos, como tinha sido para os Black Studies nos Estados Unidos, parece-me que não se trata somente de um problema de inclusão. A questão radical é o que acontece, quando figuras sociais irrompem em instituições originariamente não pensadas para eles. A questão é, então, uma nova organização do saber, cuja direção e controle não são mais externas, mas imanentes à composição do trabalho. Na dupla crise é este o grande espaço que se abre: a construção, hic et nunc, de uma universidade do comum, ou seja, além da dialética entre público e privado, que são as duas faces da mesma medalha capitalista.

IHU On-Line - Quais as novas formas de protesto e resistência que a sociedade contemporânea tem utilizado em função da crise financeira e da crise no mundo do trabalho?

Gigi Roggero – Entre as transformações que estamos discutindo, a crítica dos saberes se torna hoje imediatamente a crítica da economia política. E as lutas pela formação são as lutas pelo trabalho. Assim, a crise da universidade nos fala da crise do modo de produção capitalista, e vice-versa. Ela nos faz entender como a financeirização é uma forma adequada e perversa de um sistema que se reproduz na captura do comum. Quando falo de comum, entendo algo que não existe in natura, mas que é continuamente produzido pela cooperação do trabalho/saber vivo. E o comum tem um duplo estatuto: é prática cooperativa de liberdade e igualdade, mas é também aquilo que é continuamente desfrutado pelo capital. Todavia, precisamente porque depende do comum, ou seja, daquilo que constitui sua ameaça mortal, a financeirização é também uma forma muito frágil. Podemos pensar aqui no sistema de empréstimo, que procura pôr em valor para o capital necessidades e desejos que não podem ser atendidos. Mas, precisamente por isso, é refém de milhões e milhões de proletários que têm se recusado a pagar os débitos contraídos para ter uma casa ou para estudar, contribuindo para determinar a crise do sistema. E, com o desmoronamento do sistema do débito, creio que nos próximos tempos assistiremos nos Estados Unidos a importantes explosões nas universidades, em torno da questão do acesso, do corte dos salários e da redução também do trabalho precário.

Ora, neste quadro o problema das lutas é o de libertar-se de qualquer tentação nostálgica, para a assim chamada “economia real” ou para os estados-nação. Essa é uma resistência conservadora. O que nos interessa é, ao contrário, uma resistência transformadora. Não penso que seja possível um New Deal, como nos anos 1930. O sistema é irreformável. Então, a questão é um New Deal das lutas e dos movimentos que se ponha num plano imediatamente constituinte ou de construção de um novo welfare do comum, o commonfare, ou seja, uma reapropriação da riqueza social e das instituições atualmente congeladas na dialética entre público e privado. Em outros termos, o problema não é devolver a economia para as mãos do Estado, mas reapropriar-se também das instituições financeiras, determinando comando e decisão coletiva dentro delas próprias.

IHU On-Line - Como a Europa de modo geral tem reagido à crise internacional? O que mais tem mudado na vida das pessoas?

Gigi Roggero - A Europa desconsidera a falta de coragem institucional no processo de unificação política, a par das resistências “soberanistas” e “estatalistas” de boa parte da esquerda. O resultado é claramente visível nas últimas eleições europeias, com a derrota seca e provavelmente irreversível das opções liberal-democráticas e socialistas e a afirmação de posições “antieuropeístas”, algumas das quais de claro cunho racista e xenófobo. Estas posições se alimentam na crise, fornecendo à dura materialidade das condições de vida proletárias (redução dos salários, aumento da precariedade, desaparecimento dos amortizadores sociais) uma clássica resposta de fechamento territorial, identitário e corporativo, no qual o trabalho migrante é o principal objetivo. Então, emergem expressões políticas justicialistas de quem aponta o índice e invoca a forca para os corruptos simplesmente para salvar um sistema que produz essa mesma corrupção. Não se sai, no entanto, dessa situação, como alguns destacados teóricos radicais gostariam, com uma opção classicamente reformista, que visa a desenvolver o “comunismo do capital”, pensando que a crise seja simplesmente um bloqueio temporário ao pleno crescimento do capitalismo cognitivo na Europa central. A Europa política é, ao contrário, repensada a partir das lutas (por exemplo, aquelas da universidade e do trabalho cognitivo e migrante) que nos últimos anos construíram uma rede comum. Não quero aqui propor uma fé qualquer nos magníficos e progressivos tipos de movimentos. O problema é a relação – conflitiva e pragmática – entre estas e as outras formas de governar. De fato, não existe um fora da governança: qualquer idéia de uma ilha feliz é especular sobre a opção reformista. O governar [a governança] significa impossibilidade de governo sobre o trabalho vivo e é a forma institucional da crise permanente. O problema dos movimentos é, então, o dar lugar institucional de reapropriação e espaço constituinte, ao mesmo tempo, no âmbito metropolitano e continental, levando à exaustão os consumidos limites nacionais. Este é um dos motivos pelos quais procuramos aprender daquilo que está acontecendo no extraordinário e também produtivamente contraditório laboratório político da América Latina.

IHU On-Line - Que rumos o senhor imagina que a economia mundial tomará a partir desta crise financeira global?

Gigi Roggero - A crise da economia global significa o fim do neoliberalismo. Com isso não quero dizer que tenham terminado os seus efeitos, mas estes não conseguem mais fazer sistema. Isso não é acompanhado pelo retorno de um forte papel do Estado, como muitos da esquerda sonham. Ainda bem, acrescento! A salvação dos bancos por parte do Estado só demonstra aquilo que sustentamos até agora, ou seja, a íntima articulação do público e do privado no desenvolvimento capitalista. O capitalismo não desaparecerá por si, isso é certo. Além disso, as hipóteses de um desmoronamento do capitalismo – como ensina o que aconteceu nos anos 1920 e 1930 do século XX – sempre trouxeram muito mal... E em todo o caso, de fato, não se diz que aquilo que vem depois do capitalismo seja, por natureza ou por graça recebida, algo melhor. Certamente está emergindo um capitalismo profundamente modificado, que assume a crise como elemento insuperável. É um capitalismo que procura reproduzir-se do conceito de limite, que na Europa se chama de teoria do “decrescimento”, propugnada por quem procura convencer os proletários e os não ocidentais a não desejarem as mercadorias que eles (teóricos de uma classe média em crise) consomem. A tese do decrescimento é hoje uma política capitalista, feita de valorização da sustentabilidade ambiental, de uma nova hierarquia das mercadorias e do contínuo bloqueio das forças produtivas. Crescimento e desenvolvimento são, de fato, coisas completamente distintas. Uma crítica radical do desenvolvimento capitalista – que se compõe historicamente de crescimento e decrescimento – deve, pois, mover, não o limite, mas a potência do trabalho vivo, a possibilidade de decisão coletiva sobre a riqueza social produzida em comum.

Dizer isso não significa não conceder nada à utopia, como prefiguração de um futuro distante que, desde sempre, tem sido usado pelos partidos da esquerda para edulcorar as instâncias de transformação radical no presente. Nem significa retornar a uma ideia do desenvolvimento histórico que procede por estádios progressivos. A tendência não pertence à objetividade, mas à organização e às relações de força. Para argumentar sobre este otimismo da razão quero apenas fazer notar que os anos 1990 se abriram com o anúncio triunfal do “fim da história” de Fukuyama e, paralelo a isso, a declaração de impotência de pensadores radicais que falavam de um invencível “pensamento único”. Não faz nem vinte anos e a crise do capitalismo é o argumento cotidiano de toda a mídia do mundo. Se completarmos o quadro com aquilo que está ocorrendo no Brasil e na América Latina e ao mesmo tempo com a derrota do unilateralismo americano, escutando quem há muitos anos implora a passividade das novas figuras do trabalho aniquiladas e fragmentadas pelo “pensamento único”, se traz à lembrança aquilo que Marx, em 09 de dezembro de 1851, respondia a Engels que se lamentava do comportamento “estúpido e infantil” do povo parisiense que não se opusera ao golpe de estado de Luiz Bonaparte: “o proletariado poupou as suas forças”. Agora se trata de organizá-las no agir comum.

Biocapitalismo. A vida no centro do crescimento econômico, por Christian Marazzi

Para Christian Marazzi, vivemos a crise de um modelo de capitalismo que vem se afirmando a partir da crise do capitalismo fordista-industrial dos anos 1970


Christian Marazzi: Biocapitalismo. A vida no centro do crescimento econômico
Por: Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger , 20/07/2009

A partir da análise que faz da atual crise financeira mundial, o economista francês Christian Marazzi considera que os pilares do capitalismo financeiro que hoje se encontra em crise, são os seguintes: “um ataque sistemático à classe operária, com redução dos salários, flexibilização do trabalho e aumento da extração de mais-valor na esfera da distribuição”. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail, Marazzi afirma que “o modo capitalista de governar está (...) em crise num plano global. Estamos assistindo a uma proliferação de centros de poder em escala mundial (asiático, latino-americano, europeu, estadunidense) que impede uma regulação concertada da saída da crise. Chama-se ´globo-esclerose´ e significa que nenhum polo capitalista regional está em condições de assumir o comando do crescimento econômico mundial”. Ele constata que “assistimos (...) a um deslocamento à direita em quase todas as partes do mundo, a uma crise da globalização (ou seja, a uma ‘desglobalização’) com impulsos autárquicos e com a ascensão de movimentos de direita e racistas por toda a parte”.

Christian Marazzi é professor e diretor de investigação socioeconômica na Universidade della Svizzera Italiana. Também foi professor na Universidade Estadual de Nova York, na Universidade de Pádua, em Lausanne e Genebra. Entre suas obras, citamos Autonomia (Cambrigde: Mit Press, 2007) e Capital and language (Cambrigde: Mit Press, 2008), em parceria com Michael Hardt e Gregory Conti. A obra O lugar das meias. A virada linguística da economia e seus efeitos na política (São Paulo: Civilização Brasileira, 2009) foi traduzida para o português neste ano.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O capitalismo está mesmo em crise ou vivemos apenas uma crise nas finanças? O que caracteriza essa crise?

Christian Marazzi - Esta é a crise de um modelo de capitalismo que vem se afirmando a partir da crise do capitalismo fordista-industrial dos anos 1970. Os pilares do capitalismo financeiro, hoje em crise, são os seguintes: um ataque sistemático à classe operária, com redução dos salários, flexibilização do trabalho e aumento da extração de mais-valor na esfera da distribuição. É o assim chamado biocapitalismo, que põe no trabalho a vida inteira dos trabalhadores, fazendo-os trabalhar gratuitamente na esfera da reprodução e da circulação, mas sem pagá-los. A globalização, por sua vez, estendeu este processo de “colonização” capitalista, dos processos de valorização do capital, para além dos portões das fábricas. Mas uma característica específica deste capitalismo hoje em crise é a centralidade das finanças e do débito privado (o endividamento das famílias). Num certo sentido, o estado social (Welfare State) “delegou” à economia privada e às finanças algumas das suas funções fundamentais, em particular, a criação de uma demanda aglutinada com o mecanismo do déficit spending keynesiano. Ou seja, a economia financeira criou rendimentos necessários ao crescimento econômico, por meio de débitos privados, dos quais os subprimes americanos são somente um exemplo. É este “modelo” de capitalismo que não funciona mais, e é com base na crise deste modelo que o capitalismo está hoje procurando se reestruturar. Entretanto, a crise será particularmente longa e corre o risco de durar uma dezena de anos.

IHU On-Line - O capitalismo ainda tem força para governar nossas vidas? Onde deverá estar o poder a partir deste cenário de crise?

Christian Marazzi - O capitalismo governa hoje as nossas vidas através da crise, das demissões, da pobreza difusa, do medo e do sentimento de culpa (a culpa de ter se endividado e de dever reconstruir o próprio balancete familiar!). O modo capitalista de governar está, no entanto, em crise num plano global. Estamos assistindo a uma proliferação de centros de poder em escala mundial (asiático, latino-americano, europeu, estadunidense), que impede uma regulação concertada da saída da crise. Trata-se da “globo-esclerose” e significa que nenhum polo capitalista regional está em condições de assumir o comando do crescimento econômico mundial. Nesse sentido, é possível que as lutas sociais possam aprofundar a crise do governo capitalista sobre as nossas vidas.

IHU On-Line - O senhor também identifica a crise da teoria neoliberal?

Christian Marazzi - Certamente o neoliberalismo está conhecendo uma crise de legitimidade política, além da econômica. Mas não estou certo de que seja o fim do liberalismo. Assistimos, ao invés disso, a um deslocamento à direita em quase todas as partes do mundo, a uma crise da globalização (ou seja, a uma “desglobalização”) com impulsos autárquicos e com a ascensão de movimentos de direita e racistas por toda a parte. Nos próximos meses e anos, os movimentos de luta serão confrontados com estes impulsos neoliberais e populistas e deverão organizar-se para reconstruir uma frente de resistência contra a restauração do liberalismo reacionário.

IHU On-Line - Que alternativas podemos imaginar neste momento, do ponto de vista econômico?

Christian Marazzi - É preciso lutar contra a pobreza, contra o desemprego, contra a perda das aposentadorias. É preciso lutar pela abolição dos débitos privados das famílias e pela criação de novas formas de consumo social nos quarteirões, nas cidades, em regiões inteiras. Creio que a luta contra o conceito capitalista de “crescimento econômico” seja a próxima fase: inventar formas de “crescimento ecológico”, abolir o uso capitalista do território, dos espaços urbanos. Isso me parece ser o horizonte alternativo que se delineia para nós.

IHU On-Line - Quais os riscos e limites de uma economia real internacional globalizada?

Christian Marazzi - Os riscos estão ligados ao uso capitalista da internet como “dispositivo de comando” (o olho do poder). Mas creio que a digitalização do capitalismo seja um bem para a luta política anticapitalista, no sentido de que permite generalizar o conhecimento crítico e coordenar as lutas sociais.

IHU On-Line - Em que medida a crise financeira internacional transforma o capitalismo cognitivo?

Christian Marazzi - O capitalismo cognitivo está atravessando uma fase crítica, no sentido de que, para reduzir os custos de produção, o capital está licenciando uma parte importante dos knowledge workers. Haverá, nos próximos meses, processos de concentração do capital cognitivo e a eles deveremos saber responder com processos de dispersão da inteligência inovadora. Unir os knowledge workers às lutas dos pobres, eis o que devemos tentar.

IHU On-Line - Qual o valor que adquire o biocapitalismo e a política do comum neste momento de crise?

Christian Marazzi - O biocapitalismo põe a vida no centro do crescimento econômico. A própria vida, a vida nua, se torna fonte de valor, ou melhor, um mais-valor absoluto que não é reconhecido pelo capital e, portanto, não é pago. Por essa razão, o rendimento garantido é a forma de reconhecimento da força produtiva da vida colocada no trabalho.

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Ainda:

23/3/2009

Política do comum: uma fonte direta de valor econômico. Entrevista especial com Christian Marazzi


“A economia real se ‘internetizou’, de modo que a distinção entre trabalho material e trabalho imaterial não funciona mais”, aponta o economista francês Christian Marazzi, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Isso significa, explica, que “entramos numa fase do capitalismo cognitivo que tem, na sua crise permanente, a sua forma de funcionamento”.

Ao avaliar a crise do mundo do trabalho global que se estende do desemprego à pobreza, Marazzi diz que a saída para resolver esses problemas será longa. Sem muitas perspectivas, afirma ainda que “as novas diretrizes, as novas estratégias emergentes nesta crise global estão indo na direção de uma intensificação do trabalho e de uma redução prolongada do volume ocupacional, tanto nos países de capitalismo cognitivo avançado, como naqueles particularmente centrados na produção de manufaturas”. E completa: “As mudanças internas do mundo do trabalho vão depender muito da capacidade de relançar um ciclo de lutas sobre salário e horário de trabalho”.

Christian Marazzi esteve no Brasil no mês de dezembro (de 2008), onde ao lado de Antonio Negri, Michael Hardt, Yabb Moullier Boutang e Giuseppe Cocco, participando do Seminário Mundo Vix, realizado de 10 a 12 de dezembro, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e do Fórum Livre do Direito Autoral: O domínio do comum, nos dias 15, 16 e 17 de dezembro de 2008, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Marazzi é professor e diretor de investigação socioeconômica na Universidade della Svizzera Italiana. Também foi professor na Universidade Estadual de Nova York, na Universidade de Pádua, em Lauseanne e Genebra. Entre suas obras, citamos Autonomia (Mit Press, 2007) e Capital and language (Mit Press, 2008), em parceria com Michael Hardt e Gregory Conti. Neste mês de março, Marazzi vai lançar o livro O lugar das meias. A virada linguística da economia e seus efeitos na política, pela editora Civilização Brasileira.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste a política do comum? Como ela pode contribuir para resolver os problemas sociais e econômicos da sociedade?

Christian Marazzi – A política do comum parte das formas de atividade humana que se dão dentro daquilo que chamamos de biocapitalismo, ou seja, o capitalismo que faz do bios, da vida, uma fonte direta de valor econômico. Hoje, para trabalhar e para ser parte da rede social e de reprodução (da vida), coopera-se, ativa-se constantemente nas redes, produzem-se relações sociais, inovação e informação, enfim, se produz uma quantidade de valor que é utilizado pelo capital somente em parte (e somente numa mínima parte é reconhecido e remunerado!). O comum é tudo aquilo que excede estas quantidades de valor e a política deve saber um “rosto”, uma voz, uma forma de “representação” a este excedente.

IHU On-Line – Que relações podem ser estabelecidas entre consumidor e produtor, na sociedade atual?

Christian Marazzi – Existe uma sobreposição entre produção e consumo no biocapitalismo, no sentido que se produz consumindo. O consumidor, cada vez mais, produz aquilo que consome, como no “modelo Google” em que a atividade de browsing é ao mesmo tempo produtora de valor-informação. E este é o resultado do longo processo de colonização capitalística da esfera da circulação (a esfera das trocas de bens e serviços), um processo muito bem conhecido pelas mulheres, que na esfera da circulação-produção desde sempre produzem valor humano não reconhecido como capital.

IHU On-Line – Em O lugar das meias, o senhor aprofunda a análise da nova qualidade do trabalho. Nesse sentido, como ocorre a integração das atividades de produção e reprodução?

Christian Marazzi – As atividades produtivas são hoje prevalentemente atividades comunicativo–relacionais, ou seja, atividades nas quais o centro é a linguagem, a comunicação, a relação. O que une produção e reprodução são, portanto, as capacidades linguístico-comunicativas das mulheres e dos homens, ou seja, atividades que tem uma valia universal, que são características universais do ser humano (animal lingüístico por excelência). O capital “põe em funcionamento” estas qualidades universais, e o faz privatizando-as, separando-as do corpo da força-trabalho.

IHU On-Line – O senhor afirma que a produção da riqueza é assegurada hoje por uma comunidade biopolítica. Pode nos explicar essa ideia? Em que sentido ela se relaciona com a questão do biopoder?

Christian Marazzi – A comunidade biopolítica é aquela que produz a partir das formas de vida. Neste sentido, as análises de Michel Foucault são particularmente úteis, mesmo se o capital conseguiu, desde os anos 80 até hoje, ir além do regimento político das vidas, no sentido de que hoje em dia o capital governa também economicamente as nossas vidas. Por esta razão, é essencial desenvolver também formas políticas de organização das comunidades biopolíticas.

As lutas e as mobilizações sociais destes últimos anos são sempre lutas e mobilizações transversais, em que está em jogo a comunidade na sua globalidade, a biocomunidade. É daqui que se precisa partir para repensar a política.

IHU On-Line – Vivemos hoje uma crise do sistema financeiro ou uma crise do capitalismo contemporâneo?

Christian Marazzi – O capitalismo contemporâneo é o capitalismo financeiro. O fato de a economia ter se financializado não é uma “degeneração” neoliberalista, mas a forma adequada e perversa do capitalismo contemporâneo. Cada vez mais a finança é o modo de tirar proveitos com base na quantidade de valor produzido na esfera da circulação, portanto fora dos processos diretamente produtivos.

IHU On-Line – Como o senhor define o trabalho cognitivo?

Christian Marazzi – O trabalho cognitivo é aquele que para ser executado ativa qualidades mentais, lingüísticas e comunicativas. É um “trabalho sobre o trabalho”, um meta-trabalho, no qual o processo produtivo é observado, lido, interpretado e operado no interior de uma rede de cooperação social.

IHU On-Line – O senhor diz que a explosão da bolha especulativa, em março de 2000, deve ser considerada a primeira crise financeira do capitalismo cognitivo. Considerando esse pensamento, em que etapa do capitalismo cognitivo pode ser classificada a atual crise financeira?

Christian Marazzi – Desde a crise da New Economy até hoje, o capital se desenvolveu ao longo das linhas de débito privado e da extensão do modelo Google (assim dizendo) desde os setores imateriais àqueles materiais. A economia real se “internetizou”, de modo que a distinção entre trabalho material e trabalho imaterial não funciona mais. Entramos numa fase do capitalismo cognitivo que tem, na sua crise permanente, a sua forma de funcionamento.

É o capitalismo cognitivo que funciona através das crises, crises cada vez mais aproximadas, durante as quais a inteligência coletiva é ás vezes “rompida”, destruída, desvalorizada.

IHU On-Line – De que maneira o trabalho imaterial interfere no salário dos trabalhadores cognitivos?

Christian Marazzi – Intervém de forma variável, como efeito da participação, identificação e cooperação nas atividades concretas do trabalho. As modalidades de remuneração desta parte variável são aleatórias e arbitrárias, baseiam-se quase sempre em critérios meritocráticos, e nunca levam em consideração a natureza social e coletiva do agir cognitivo.

IHU On-Line – Em que sentido as alterações na economia transformam o mundo do trabalho no Planeta? As transformações no mundo capitalista e a crise financeira transformam de modos diferentes o mundo do trabalho imaterial e cognitivo?

Christian Marazzi – O mundo do trabalho global está hoje totalmente em crise, e a saída desta crise será muito longa. Hoje, a transformação do universo do trabalho passa através do desemprego e da pobreza. As novas diretrizes, as novas estratégias emergentes nesta crise global, me parece, estão indo na direção de uma intensificação do trabalho e de uma redução prolongada do volume ocupacional, tanto nos países de capitalismo cognitivo avançado, como naqueles particularmente centrados na produção de manufaturas. As mudanças internas do mundo do trabalho irão depender muito da capacidade de relançar um ciclo de lutas sobre salário e horário de trabalho.