Monday, May 18, 2009

O Império e a Multidão no contexto da crise atual. Entrevista especial com Giuseppe Cocco

18/5/2009

O Império e a Multidão no contexto da crise atual. Entrevista especial com Giuseppe Cocco


Esteve na Unisinos na última quarta-feira, dia 13 de maio, o professor Giuseppe Cocco. Ele participou do Seminário Crise, políticas públicas e transferência de renda, promovido pelo Curso de Serviço Social da Unisinos em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Convidado pelo IHU, ele proferiu também a conferência “O Império e a Multidão no contexto da crise atual”.

Na ocasião ele concedeu pessoalmente a entrevista que segue à IHU On-Line, na qual declarou que “a crise mostra, por enquanto, em primeiro lugar, que não é verdade que a contradição do capitalismo global seria o fato de ter uma esfera financeira irracional, fictícia, e uma esfera real. Ao contrário. Há uma única economia, um único capitalismo, do qual as finanças são a forma fundamental. Uma vez que elas entram em crise, o que está em crise é o capitalismo”.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciências Políticas, pela Università degli Studi di Padova e pela Université de Paris VIII. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, das revistas Lugar comum e Global Brasil. Também é autor de diversos livros, entre os quais citamos Trabalho e cidadania - Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), este último em parceria com Antonio Negri.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para entendermos os conceitos de Multidão e Império, o senhor pode nos contar um pouco da história da esquerda política na Itália?

Giuseppe Cocco – Mais do que a história da esquerda na Itália – que seria longa -, vou falar mais especificamente sobre uma parte dela, que diz respeito à genealogia da formulação destes dois conceitos de Multidão e Império. O mais antigo é o de Multidão, apesar do conceito de Império também já ser antigo e estar aplicado ao mundo e capitalismo contemporâneos, e às formas de soberania que caracterizam a globalização. Estamos falando de dois conceitos usados pelo militante, filósofo e cientista social Antonio Negri, que participava de uma corrente de pensamento desde os anos 1960, na Itália, chamada operaismo.

Trata-se de uma experiência exclusivamente italiana, e que, nos final dos anos 1950 e início dos anos 1960, trabalhava a renovação do marxismo diante dos impasses do segundo pós-guerra para o movimento operário e para a esquerda. As figuras mais conhecidas desta corrente de pensamento são o próprio Negri, o cientista político romano, ligado ao Partido Comunista, Mario Tronti, que é vivo ainda, e um outro, que era o animador inicialmente, Raniero Panzieri. Eles faziam uma revista que se chamava Quaderni Rossi (Cadernos Vermelhos), e depois a Classe Operária.

O intuito dessa reflexão neo-marxista, era fazer uma releitura de Marx e promover um debate sobre as transformações do capitalismo, que se tornaram hegemônicas em função da saída da crise dos anos 1930, e da forma que o desenvolvimento tomava nos países do mundo todo no segundo pós-guerra. A proposta deste tipo de abordagem era, fundamentalmente, radicalizar alguns dos elementos que já estavam em Marx no mérito da crítica do capitalismo. Ou seja: analisar o capital como uma relação de forças, de força contra força, e, deste ponto de vista, assumir a dualidade substancial do capitalismo. Isso significa que o capitalismo encontra a sua dinâmica, a sua pujança, o seu próprio desenvolvimento em algo que contém, mas é potencialmente o seu limite: o trabalho operário. A fonte de todo o desenvolvimento, de toda a inovação, não está do lado do capital, mas do lado do trabalho. Isso implicou, naquele momento, em trabalhar os conceitos de classe operária, em termos de composição técnica e recomposição política. E, portanto, em função dessa composição, implicou trabalhar, primeiro, a determinação operária do desenvolvimento do capital (e, portanto, o keynesianismo, o fordismo, o americanismo como algo determinado pelas lutas operárias); nesse sentido, quanto mais lutas, mais desenvolvimento.

E o segundo elemento é o fato de que essas lutas não eram sempre iguais, em função da composição técnica da classe (quer dizer do paradigma vigente do trabalho), elas tinham características diferentes. Se o americanismo e o fordismo constituíam sempre um regime de acumulação capitalista, esse regime se diferenciava dos outros e essa diferença estava justamente na composição técnica do trabalho, quer dizer na nova composição técnica do operariado e, pois, de suas lutas. Naquele momento, essa queria ser uma resposta aos impasses nos quais se encontravam a esquerda e os sindicatos italianos no segundo pós-guerra, diante da chegada e difusão dos métodos tayloristas. Os sindicatos ainda faziam referência a um tipo de operariado que já não existia mais em função da introdução do taylorismo. Esse operariado tinha sido o sujeito social do grande ciclo de lutas que teve seu auge na revolução soviética, a revolução alemã. Sua composição técnica era de alta qualificação profissional ao passo que sua recomposição política se fazia nas lutas pelo poder sobre os meios de produção.

Com o taylorismo, ao contrário, tínhamos um operariado massificado, sem alta qualificação técnica, vindo do campo ou das migrações internas e externas, recém-chegado aos grandes pólos de industrialização. Seu terreno de recomposição política não era mais a articulação de luta econômica e luta política para traduzir em nível estatal seu poder sobre a produção, mas a luta salarial e a recusa do trabalho. A luta econômica já continha a luta política. Havia uma outra composição técnica, e os processos de composição política se determinavam em termos diferentes. Esse era o trabalho inicial desses teóricos e militantes neo-marxistas, os operaistas italianos. O livro de César Altamira, Os marxismos do novo século,(Civilização Brasileira, 2008) faz uma boa apresentação dessa história .

IHU On-Line - E os conceitos de Império e Multidão. Como se chegou a eles?

Giuseppe Cocco – Os operaistas italianos tinham previsto as condições e as dinâmicas de luta, organização, de movimento, que iam se afirmar com o Maio de 68, e sobretudo no caso italiano um grande ciclo de lutas operárias autônomas (por fora das organizações sindicais) conhecido como o Autunno caldo (Outono de 69). Dentro desse momento, em 1970, o operaismo de divide em duas vertentes: uma é aquela do Tronti (o Raniero Panzieri já havia falecido) e de outros que assumem essa dinâmica operária dentro de uma perspectiva de forte reformismo e de renovação poderíamos dizer “operaista” do sindicato e do Partido Comunista. A outra é a do grupo do Negri que, ao contrário, irá trabalhar a proposta de um novo tipo de organização, chamada autonomia operária, que negaria a clivagem entre luta operária e organização política, entre sindicato e partido. A temática da autonomia operária, ao mesmo tempo, visava tanto uma crítica do reformismo quanto uma crítica da própria forma de partido, de toda e qualquer representação.

Portanto, colocava a perspectiva da organização num terreno horizontal, de participação horizontal. A autonomia operária já se organizava em rede, não era uma organização, mas um movimento, uma constelação de grupos, assembleias autônomas e coletivos, que, espalhados nas metrópoles e entre as metrópoles, irão formar um movimento muito forte, cujo auge se deu em 1977. Ao mesmo tempo, os anos 1970 eram também o palco de uma grande reestruturação industrial, que começa com a descentralizacão produtiva (o uso das redes de fornecedores), da desverticalização das grandes fábricas fordistas, e dos primeiros investimentos em automação, com o uso da eletrônica e da robótica.

Assim, nos meados dos anos 1970, essa fase expansiva do operário/massa taylorista começa a entrar em crise. E, diante de nós, tínhamos uma multiplicação de atividades produtivas difusas no território. Ou seja, a produção se reorganizava, automatizando-se e indo para o território, respondendo, nesse sentido, a uma reivindicação, que estava dentro da crítica da organização do trabalho e da prática da recusa do trabalho fabril alienado, taylorista. Ao mesmo tempo, começava a fragmentação da relação salarial, rompiam-se os grandes coletivos, as grandes concentrações homogêneas de operariado industrial. Então, o que se observa, em meados dos anos 1970, é justamente o fato de que não havia mais essa co-relação entre a grande homogeneização capitalista das forças do trabalho e os grandes processos de homogeneização dos movimentos.

A primeira tentativa teórica, que o próprio Negri lançou, foi a de falar não mais de um operário/massa, tipo fabril, mas de um operário social. Só que com o operário social ainda havia uma visão da composição de classe como algo de homogêneo, a socialização do trabalho continuava de uma certa maneira a ser relacionada à condição operária. A relação salarial era ultrapassada e paradoxalmente mantinha-se como referencial sociológico. A década de 1970 se fecha com a derrota social do movimento, agravada pelas conseqüências judiciárias da espiral de repressão e ações armadas.

E é justamente nessa época que Negri, a partir de suas leituras de Spinoza bem como das leituras de Spinoza feitas por Deleuze, recupera este conceito de massas enquanto Multidão. E é algo que irá amadurecer em seguida, com várias contribuições, inclusive de Paolo Virno. O conceito de Multidão será aplicado a uma renovação política e sociológica do que chamamos em italiano de inchiesta (pesquisa-ação), ou seja, é uma tentativa de renovar a análise crítica da composição de classes. Não mais procurando os elementos de homogeneidade, mas começando a pensar em uma multiplicidade de sujeitos. Ou uma multiplicidade de figuras produtivas, sociais, que estão dentro e fora da fábrica, dentro e fora da relação salarial, dentro e fora da modernidade, constituída por operários, mulheres, jovens, desempregados, imigrantes estrangeiros, indígenas.

IHU On-Line – E o conceito de Império veio mais adiante?

Giuseppe Cocco – Sim. Havia esse conceito de multidão implicando, por um lado, na radicalização da experiência da autonomia e, por outro lado, precisava de esforço teórico que depois irá se desenvolver em termos sociológicos com as análises sobre a centralidade do trabalho vivo. Isso será desenvolvido, sobretudo, com as reflexões sobre o pós-fordismo, o trabalho imaterial das quais participaram também Maurizio Lazzarato, Paolo Virno e Christian Marazzi. Como já afirmei acima, a primeira metade dos anos 1980, para essa geração de Negri, é o período da derrota: prisão, exílio, processos e crise geral dos movimentos (Aliás, falando nele, há referências sobre isso no livro sobre Jó (Jó. A força do escravo (Rio de Janeiro: Record, 2007), no início, quando ele fala do sofrimento, da prisão, e como ele trabalha o próprio sofrimento como ponto de partida para repensar a potência da liberdade).

Na segunda metade dos anos 1980, a reflexão amadurece, inclusive em função do ambiente teórico francês: em particular com a filosofia de Deleuze e Guattari e de Michel Foucault, mas também, no que diz respeito à heterodoxia econômica, pelo dialogo critico com a “escola da regulação” de Aglietta e Boyer. E, no final dos anos 1990, há uma série de eventos que marca o auge da hegemonia neoliberal como a ideologia de um novo regime de acumulação que se caracteriza como global no espaço e no tempo. No espaço, porque envolve o planeta como um todo; e no tempo, porque investe a vida.

Este capitalismo global passa por dois eventos fundamentais que o caracterizam. O primeiro é a queda do muro de Berlim, portanto, a queda oficial da organização hierárquica do mundo que caracterizava o período industrial, entre o Primeiro, o Segundo e o Terceiro mundos, e essa relação entre centro e periferia, que caracterizava a competição entre os dois imperialismos (o soviético e o americano). Ao mesmo tempo, ia por água abaixo a perspectiva desenvolvimentista que devia levar o Terceiro Mundo em direção a um dos centros. A queda do muro de Berlim “homogeneíza” o mundo, no sentido em que o subsume dentro de uma única realidade.

Ela corresponde a uma comemoração emblemática, pois era o bicentenário da Revolução Francesa (1789-1989). As comemorações da Revolução Francesa deram todo o espaço à ideologia do fim da história (Fukuyama), sustentada pelo revisionismo histórico de François Furet que dizia que a revolução tinha terminado, se é que ela efetivamente existiu. Então, o primeiro elemento é que a globalização faz desmoronar os muros, as separações entre os modelos alternativos, e se afirma como o fim da história, um horizonte totalizador no espaço, no tempo, que não deixa nenhuma alternativa. A queda do muro de Berlim aparece como a queda de qualquer alternativa. E o outro grande evento é a primeira Guerra do Golfo, em 1990-1991.

Se o livro Poder Constituinte (Rio de Janeiro: Record, 2006) foi como que uma resposta ao revisionismo que negava a existência e o papel da revolução, ele já era um pouco o embrião do Império. Se o poder constituinte era uma afirmação teórica e política da impossibilidade de acabar (termidorizar, poderíamos dizer) a revolução, a proposta de Império era definir um outro campo, um outro contexto de luta, não mais o imperialismo, mas imperial, como o espaço de um novo tipo de lutas e alternativas.

Todos falavam da queda do império soviético, da crise dos imperialismos, do fim das grandes narrativas e, então, apareceu essa nova proposta de império: um não lugar sem fora. É dentro deste Império, que tem como dinâmica o capitalismo global, pós-fordista, que aparece uma nova contradição, interna. No Império e em sua soberania supranacional, nós temos a monarquia militar norte-americana, a aristocracia das instâncias supranacionais de governança da globalização (que são a OMC, o FMI, Banco Mundial, Nações Unidas, OMS e e as grandes empresas multinacionais), além de termos a democracia dos movimentos. O conceito de Império vem propor um novo âmbito de lutas, dizendo que isso não tem nenhuma relação com o fim da história, mas sim, por um lado, com a definição de um novo campo de contradição entre a construção aristocrática por parte do capital global, apoiado no poderio militar norte-americano, de uma soberania supranacional, e, por outro, com uma radicalização democrática, que vem dos movimentos e da composição de um novo tipo de trabalho. Foi uma bela antecipação do movimento de Seattle e Genova, bem como dos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre.

IHU On-Line - Como esses conceitos se aplicam neste contexto de crise atual?

Giuseppe Cocco – A crise mostra, por enquanto, em primeiro lugar, que não é verdade que a contradição do capitalismo global seria o fato de ter uma esfera financeira irracional, fictícia, e uma esfera real. Ao contrário. Há uma única economia, um único capitalismo, do qual as finanças são a forma fundamental. Uma vez que elas entram em crise, o que está em crise é o capitalismo. Por isso podemos falar de crise sistêmica. Não existe uma economia real que se sairia melhor do que isso. A segunda consideração é que, quando analisamos o que acontece em termos de tentativas dos governos, passando pelos Estados Unidos, a China, a Europa e o próprio Brasil, de definir políticas de saída da crise, vemos que aparece com clareza o fato de que elas precisam ser globais. Ou seja, isso se dá no âmbito do Império. O que o período do governo de George W. Bush parecia indicar como um império norte-americano, algo como um imperialismo hegemônico sem competidores, eu acho que a crise e também a eleição de Obama desmentem. O novo presidente norte-americano representa uma reafirmação da dimensão multipolar do Império. E a reunião do G-20, com o protagonismo do Brasil e da presidência Lula, é uma confirmação do Império como um espaço aberto, supranacional, não mais imperialista: claro, os Estados Unidos e o dólar continuam desempenhando um papel unico, no entanto, a meu ver, as teses fundamentais são confirmadas. Aliás,já podemos entrever a redefinição possível dos elementos de hierarquia da divisão internacional do trabalho que caracterizaram a primeira fase da globalização. O próprio processo de integração sul-americana, governado por essa geração de governos progressistas é uma grande confirmação desse horizonte: a globalização é um espaço também de radicalização democrática.

No que diz respeito à Multidão, quando pensamos nos movimentos e no que acontece dentro da crise, percebemos que toda uma série de novos desafios está senda colocada. A crise se transforma em um aumento impressionante do desemprego, da pobreza, e quem está pagando pela crise são os pobres, os trabalhadores. Ao mesmo tempo, não vemos uma pujança de propostas por parte das organizações tradicionais. E aqui falo dos sindicatos e da esquerda sobretudo dos países centrais. No caso do Brasil, da América do Sul, a situação é mais interessante do ponto de vista dos movimentos, inclusive dos partidos de esquerda. Mas, nos países centrais, estamos assistindo a um contínuo declínio da esquerda institucional, social-democrática e à incapacidade de reconstruir um terreno de luta a partir de uma perspectiva meramente operária, de um sujeito homogêneo. Nós precisamos de uma teoria e de uma política da multiplicidade, sem isso, diante dessa diversidade que constitui o social hoje, ficamos paralisados. O conceito de Multidão, articulado com o de trabalho imaterial, é importante e me parece o mais adequado.

A proposta política e teórica de Negri e Michael Hardt é na realidade a de reconstruir uma grande narrativa alternativa, a grande narrativa dos possíveis, por isso eles propuseram um tripé: Império, Multidão e Comum. O terceiro pé sairá em breve publicado. Esse tripé é: uma análise crítica da nova soberania (o Império); uma análise da produção da subjetividade (Multidão); e agora uma proposta alternativa, que vai se chamar commonwealth (Comum), que quer dizer a tentativa de definir um horizonte alternativo, pós-capitalista e anticapitalista ao mesmo tempo.

Toni Negri: do fim do socialismo à nova gramática do político* (Saverio Ansaldi, Revista Multitudes, 2009, 1)

Posto aqui hoje uma mensagem, de trabalho, para a co-produção, acolhendo a demanda da Caia...

Boa leitura!!

---------- Forwarded message ----------
From: Caia Fittipaldi
Date: 2009/5/17
Subject: [Enxame_nomade] "Toni Negri: do fim do socialismo à nova gramática do político" [Saverio Ansaldi, Multitudes, 2009, 1 (traduzido)]
To: LISTA ENXAME - Universidade Nômade


Traduzi aí -- que achei ótimo.

Queria que alguém que entenda do riscado, por favor, desse uma boa lida, pra ver se tá tudo bem.

Corrijam e ME DEVOLVAM, plíz, pra eu ter versão corrigida e distribuir. 8-)


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Toni Negri: do fim do socialismo à nova gramática do político*
Saverio Ansaldi, Revista Multitudes, 2009, 1
http://www.cairn.info/revue-multitudes-2009-1-page-105.htm

Saverio Ansaldi (Maître de conférences na universidade Montpellier III. Autor de La Tentative schellingienne. Un système de la liberté est-il possible? (L’Harmattan, 1993); Spinoza et le baroque. Infini, désir, multitude (Kimé, 2001) ; Nature et puissance. Giordano Bruno et Spinoza (Kimé, 2006).
Do comitê editorial de Multitudes.)

"O que significa construir democracia e liberdade, igualdade e riqueza num mundo em que o capitalismo ainda se crê capaz de asfixiar e reduzir a cinzas qualquer capacidade de resistência?"[1]

Como podemos, no quadro fixado pela globalização política e econômica, inventar novas formas de vida e emancipação – espaços reais de subjetividade?

Para tentar responder essas perguntas, Toni Negri nos obriga a enfrentar o passado, para construir outro futuro. Em seus dois livros mais recentes, Goodbye Mister Socialism (Paris, Seuil, 2007) e Fabrique de porcelaine. Pour une nouvelle grammaire du politique (Paris, Stock, 2006), apresenta-nos, de fato, uma dupla cartografia conceitual, incluindo uma análise da modernidade e uma construção alternativa da pós-modernidade. O ponto de partida da argumentação de Negri é radical:

"No mundo da subsunção real da sociedade sob o capital, que é o mundo em que vivemos, já não há 'fora'. Todos vivemos 'dentro' e não há 'fora'; estamos mergulhados no fetichismo da mercadoria – e não há qualquer possibilidade de recorrer a qualquer coisa que pudesse representar a transcendência. A natureza e o homem já foram modificados pelo capital."[2]

O horizonte da subsunção real permite, segundo Negri, por à luz a diferença constitutiva entre modernidade e pós-modernidade, a partir, precisamente, da possibilidade de avistar uma transcendência política ou uma exterioridade normativa em relação aos modos de produção capitalistas.

Qual foi, de fato, o projeto político da modernidade "socialista"? Construir um "fora" a partir da necessidade de uma revolução do Estado e de governo capitalista planificado. A experiência socialista sintetiza, aí, a potente dinâmica da modernidade – o significado visível e estrutural de sua história.

A construção do socialismo real representou uma necessidade terrível e um teste crucial ao qual o movimento operário não se pôde de modo algum subtrair.

O "fora" da revolução passava imperativamente pela determinação sistêmica e monárquica [orig. régalienne] de uma economia planificada. Pode-se assim dizer que o stalinismo é um fenômeno interno e imanente à modernidade europeia e não constitui, desse ponto de vista, nenhuma espécie de exceção ou erro trágico da história. Ao contrário disso, expressa a racionalidade – dura e lúcida – da prática revolucionária.

Ora, por que essa experiência política, total e única, não produziu os efeitos esperados?

[Porque] "O sistema, em sua ilusão e em sua loucura, pretendia que seria necessário ceder a liberdade, para conseguir defender a revolução. (...) Os dirigentes soviéticos não caíram, evidentemente, por causa da cortina de ferro, mas porque construíram uma enorme inteligência coletiva a qual não souberam oferecer meios livres (insisto fortemente nessa palavra) de expressão".[3]

A necessidade da revolução moderna – quer dizer, de constituir um "fora" capaz de transformar em profundidade a realidade da exploração capitalista – perdeu a oportunidade de também definir práticas inovadoras de liberdade. Com a queda do muro de Berlim e o fim do "século curto", estamos outra vez ante a necessidade/possibilidade de "fazer história": de criar outros acontecimentos e de inventar novas formas de emancipação e resistência.

Qual é precisamente o contexto de nossa história presente? É o contexto da "biopolítica", isso é, da pós-modernidade e de seus modos globalizados de produção. Não se pode mais sonhar com um 'limite' externo, do mundo, que dê sentido à prática revolucionária do Estado. Mas, por outro lado, podemos, na densa e plena imanência da pós-modernidade, construir formas de ação que levem a constituir efetiva liberdade comum e partilhada.

De fato, "o mundo definido pela subsunção real da sociedade sob o capital coagula e neutraliza, sem dúvida, as possibilidades de relação, mas não a resistência, a liberdade como potência, ou a constituição de um novo ser".[4]

Apoiando-se para essa reflexão nos últimos trabalhos de Deleuze e de Foucault, Negri opera verdadeira mudança de paradigma epistemológico na definição de "ação política". Trata-se, de fato, da primeira condição para fazer aparecer a implicação construtiva entre a biopolítica e a pós-modernidade.

Afirmar que a subsunção real determina os campos de lisibilidade e compreensibilidade da pós-modernidade é um desdobramento da estratégia complexa da biopolítica, substituindo os procedimentos disciplinares e regulatórios do Estado moderno (inclusive do Estado revolucionário e socialista). A estratégia biopolítica, constituída pelo entrecruzamento e agenciamento de práticas, saberes e instituições, permite encontrar, no próprio seio da pós-modernidade, os novos instrumentos necessários para definir uma outra prática revolucionária.

"Para nós, a biopolítica (...) é a tentativa de construir pensamento a partir dos modos de vida – sejam individuais ou coletivos (...) A biopolítica (...) é o terreno reencontrado de todo o pensamento político, na medida em que é atravessada pela potência dos processos de subjetivação (...). Se a vida não tem "fora", se, consequentemente, tem de ser vivida totalmente "dentro", a única dinâmica possível dessa vida é a dinâmica da potência".[5]

Essa potência biopolítica de subjetivação é a potência do trabalho imaterial.

Negri sublinha, sobre isso, a "reversibilidade" da biopolítica. De fato, "a biopolítica é um contexto contraditório na/da vida; por sua própria definição, esse contexto representa a extensão da contradição econômica e política sobre todo o tecido social; mas representa também a singularização das resistências que o atravessam permanentemente".[6]

A atividade produtiva dos sujeitos desdobra-se no contexto rico e articulado da subsunção real; e é precisamente nesse contexto da atividade biopolítica que a potência afirma-se e expressa-se como trabalho imaterial – quer dizer, como constituição de redes de afetividade e de cooperação.

As novas formas de vida produzidas pela globalização econômica são inseparáveis dos novos modos de produção: a dinâmica da implicação entre esses dois fatores determina a possibilidade de antever "um dispositivo virtualmente antagonista e capaz de contradizer qualquer síntese capitalista".[7]

A potência do trabalho imaterial e vivo não representa nesse sentido algum outro "fora" da globalização capitalista: a possibilidade de afirmá-la não instaura qualquer "limites" ou fixidez normativas, mas, ao contrário, instaura uma tendência "ontológica" interna à subsunção real que a todo instante quebra sua hegemonia. A noção de resistência adquire todo o seu significado justamente a partir desse pressuposto: a construção singular e coletiva da liberdade ultrapassa sempre as modalidades de exploração capitalista, instaurando uma estratégia de "diferença criativa" que desloca do interior sua lógica e sua coerência econômicas.

Como se afirma a potência do trabalho imaterial, quais as subjetividades que encarnam as formas vivas de sua constituição? Para responder essa pergunta, Negri recorre a dois temas: o tema da multidão e o tema do comum.

"A multidão não é apenas um conceito; é uma nova realidade. Para responder à questão de se a multidão é anticapitalista ou não, é preciso analisar o próprio movimento da multidão, não o conceito [ …]. O que torna a multidão subjetivamente eficaz e objetivamente antagonista é a emergência do comum, que nasce na multidão (tanto do ponto de vista produtivo, como do ponto de vista político (...). O comum é hoje a condição de todas as valorizações sociais; do ponto de vista político, é a forma mediante a qual a subjetividade organiza-se. Já não se trata de procurar afirmar alguma unidade de ação, mas de mostrar, já operante, a coerência de um agenciamento".[8]

A articulação entre a multidão e o comum permite assim definir o que se pode designar como uma nova teoria da potência antagonista. A cooperação múltipla do trabalho imaterial determina a base objetiva necessária à expressão constituinte da multidão – à afirmação de sua subjetividade. Mas essa subjetividade não se apresenta como um "sujeito" abstrato ou universal englobante – como "classe" ou como "conjunto".

A subjetividade da multidão atravessa todas as singularidades que a compõem – num processo infinito de variação contínua. A potência da multidão é necessariamente comum e biopolítica: é na ilimitada extensão da subsunção real, que multidão inventa suas formas de liberdade – apoiando-se na cooperação produzida pelo trabalho vivo e imaterial.

"O conceito de multidão é o conceito de um conjunto de singularidades, um tecido cooperativo que entrelaça toda uma infinidade de atividades singulares. Nesse terreno é que se trata, precisamente, de reconstruir, melhor: de re-elaborar, de modo aberto, o conceito de "comum".[9]

As formas da vida da multidão não determinam uma separação entre sua potência efetiva e seus modos de constituição – seu trabalho. O trabalho vivo é a potência da multidão – sua liberdade imanente ao capital, capaz de produzir e de criar os novos espaços antagonistas. De fato,

"o capital variável, i.e., a força de trabalho – ganhou uma certa autonomia (...). O comum é a soma de tudo que é produzido pela força de trabalho (Kv) independentemente do capital constante, capital total (Kc) e contra esse último."[10]

Seguem-se daí duas consequências fundamentais.

(1) "O comum" biopolítico da multidão substitui doravante a dicotomia moderna público/privado. A potência comum da multidão é prova da crise definitiva e irreversível da forma-Estado moderno, fundada sobre a apropriação paralela, privada e pública, da riqueza produzida pelo trabalho vivo.

A "disciplina institucional" do Estado formaliza as modalidades dessa dupla exploração: de um lado, pelo viés do Direito privado que regula as relações entre os cidadãos-produtores; de outro, ao instaurar uma fratura superestrutural entre (i) a subjetividade produtiva daqueles cidadãos-produtores e (ii) o capital (o Direito público).

A dialética entre Direito privado e Direito público sintetiza a especificidade política da modernidade – o poder estatal de mediação que se apropria da atividade imediata das subjetividades.

O problema que surge aqui, diz respeito à invenção de um Direito comum da multidão. Quais são os novos direitos da multidão? Quais as novas formas jurídicas adequadas à potência comum do trabalho vivo e cooperativo? De fato

"o Direito público apresenta-se hoje como expressão do biopoder; inversamente, o Direito comum apresenta-se hoje como expressão biopolítica da multidão". Por isso, "o Direito comum só é pensável a partir da destruição da exploração – seja pública seja privada – e da democratização radical da produção".[11]

Os novos direitos comuns da multidão não são tentativa de mediação jurídica entre o privado e o público estatal. Ao contrário, afirmam-se como irrupção da potência criativa do trabalho vivo, na esfera globalizada do poder imperial.

Liberdade de ir e vir, renda mínima, acesso garantido às novas tecnologias, mobilidade profissional – esses são os direitos comuns que é preciso conquistar e inventar mediante práticas de resistência e de antagonismo.

Dessa perspectiva, Negri insiste particularmente sobre a possibilidade de utilizarem-se práticas da governança, invertendo a ideia tradicional.

"Parece-me que, de fato, deve-se estabelecer completamente o conceito de governança – e sem exceção – a partir de uma pragmática do exercício do comum".[12]

A governança pode efetivamente transformar-se em estratégia biopolítica antagonista, ocupando os espaços e os domínios socioeconômicos que a crise da forma-Estado está abandonando à gestão capitalista. As formas de vida da multidão podem apropriar-se dessas práticas e deles fazer instrumentos poderosos de democracia e de justiça.

(2) As metamorfoses da atividade produtiva permitem definir as formas de invenção do comum. Esse é sem dúvida o aspecto mais radical e inovador da reflexão de Negri.

"Às transformações fetichistas do capital opõem-se as metamorfoses biopolíticas (técnicas, políticas, ontológicas) da força de trabalho. Quem queira encontrar o valor de uso, não o procure na natureza, mas na história, nas lutas, na transformação ininterrupta dos modos de vida."[13]

Sobre isso, Negri fala de uma "nova antropologia" da metamorfose:

"O problema de um novo 'comum'" é posto mediante o problema da hibridação: uma nova 'natureza' – realmente muito estranha, posto que nada nela apresenta-se como primordial ou originário – que sempre é resultado de produção contínua."[14]

Pode-se imediatamente antever uma "democracia da metamorfose" ou, dito de outro modo, uma democracia absoluta capaz de levar em conta, na constituição real das instituições, as transformações biopolíticas da multidão?

A hipótese que Negri propõe é audaciosa e apaixonante: já não se trata de reencontrar, na e pela prática política, uma naturalidade ou uma antropologia originais – sinônimas de "justiça"; trata-se de atravessar a, e apropriar-se da, artificialidade e da cooperação do trabalho vivo, para fazer dele a prática democrática da multidão. É o que Negri chama de "o êxodo": a democracia da multidão como potência constituinte da metamorfose, como transformação incessante dos "corpos-afetos" do trabalho imaterial.

Trata-se assim de construir uma nova relação entre a afirmação dos corpos singulares e sua expressão multitudinal – como biopolítica da atividade comum.

A materialidade das formas de vida encontra aqui a artificialidade dos novos modos de produção – para construir uma outra nova natureza humana, biopolítica e potente, livre e comum.

Uma natureza humana como "máquina de guerra" desejante e antagonista, capaz de metamorfosear-se nessas práticas e nesses conhecimentos, sempre capaz de inventar – contra a gestão capitalista da vida – espaços comuns de subjetivação.

"A subjetividade política apresenta-se como um corpo, porque é metamorfose permanente de corpos: é, precisamente, um fazer. (...) A subjetividade que se faz corpo político e o corpo que se faz subjetividade política misturam-se um no outro, na progressão do fazer-multidão".[15]

Essa "nova aliança" entre o social e o político apela à necessidade de dar-se nova definição à "decisão" que institui as metamorfoses democráticas da multidão. Negri sublinha, quanto a isso, o aspecto inovador e antecipador das lutas e movimentos no horizonte do Império.

De Seattle a Paris, passando por Gênova e Davos, as multidões produzem "acontecimentos" de antagonismo biopolítico que quebram a hegemonia do desenvolvimento capitalista e das forças de controle. As decisões da multidão instauram a democracia do comum, quer dizer, a criação de instituições que refletem os direitos da potência constituinte da metamorfose.

"Acreditamos, de fato, que as instituições podem ser diferentes das do capitalismo: têm de ser inventadas pelo próprio poder constituinte e representar o primeiro elemento de organização multitudinal (...). É pois possível formular, a partir desses elementos, nova definição do conceito de "revolução". Nossa hipótese é a seguinte: a revolução é uma aceleração do tempo histórico, realização de uma condição subjetiva, um acontecimento e uma abertura que contribuem para tornar possível produzir subjetividade de modo irredutível e radical."[16]

A nova gramática do político proposta por Negri nesses dois livros é aprofundamento e desenvolvimento decisivos, em relação às teses expostas em Império e Multidão. A afirmação das formas de vida da multidão, como biopolítica viva, enriquece-se aqui com reflexão original e profunda sobre a relação determinante entre o conceito de "metamorfose" e de "Direito comum". O fim definitivo do socialismo moderno já faz ver novas possibilidades de transformação política, ligadas à definição de uma antropologia da potência e de uma economia da produção cooperativa.

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* Tradução para o português do Brasil, de Caia Fittipaldi, maio-2009. Comentários e correções são bem-vindos para caia.fittipaldi@uol.com.br.

[1] A. Negri, Fabrique de porcelaine. Pour une nouvelle grammaire du politique, Paris, Stock, 2006, p. 125. Sobre o livro, ver http://lists.indymedia.org/pipermail/cmi-santamaria/2008-October/1012-cp.html

[2] Ibidem, p. 34.

[3] Ibidem, p. 34.

[4] A. Negri, Fabrique de porcelaine, op. cit., p. 34.

[5] Ibidem, p. 46.

[6] Ibidem, p. 50.

[7] Ibidem, p. 58.

[8] A. Negri, Fabrique de porcelaine, op. cit., p. 86.

[9] Ibidem, p. 97.

[10] Ibidem, p. 91.

[11] Ibidem, p. 99-100.

[12] Ibidem, p. 188.

[13] Ibidem, p. 114 ; Cf. também Goodbye Mister Socialism, op. cit., p. 258.

[14] A. Negri, Fabrique de porcelaine, op. cit., p. 143.

[15] Ibidem, p. 217.

[16] Ibidem, p. 201 ; Cf. Goodbye Mister Socialism, op. cit., p. 28-30.


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Monday, May 04, 2009

Uma crise sistêmica do capitalismo flexível, globalizado e financeirizado (Giuseppe Cocco)


“A contradição estrutural que está na base da crise é aquela, classicamente marxista, entre desenvolvimento das forças produtivas e relações (capitalistas) de produção”. E constata que “as forças produtivas hoje são aquelas de um trabalho mobilizado diretamente dentro da sociedade, sem passar pela relação salarial formal”, escreve Giuseppe Cocco, em artigo que enviou para ser publicado na revista IHU On-Line. Segundo ele, “o trabalho que constitui as forças produtivas contemporâneas, por um lado, é de tipo cognitivo, afetivo, linguístico, terciário e, pelo outro, precário, não reconhecido, flexível, formal e informal ao mesmo tempo”.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciências Políticas pela Università degli Studi di Padova e pela Université de Paris VIII. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, das revistas Lugar comum e Global Brasil. Cocco é autor de diversos livros, entre os quais citamos Trabalho e cidadania - Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), este último em parceria com Antonio Negri.

Confira o artigo.

Vivemos uma crise sistêmica e ninguém sabe qual vai ser seu desfecho. Essa incerteza radical, transformada numa crise de confiança é o que define, paradoxalmente, a certeza quanto à dimensão única da crise.

Dizer que a crise é sistêmica significa dizer que ela é fato das contradições estruturais do capitalismo contemporâneo. Essas contradições não são, como superficialmente poderia parecer, o fato do descolamento da esfera financeira com relação à esfera real (produtiva) da economia, algo que se desdobraria na contradição entre um capitalismo bom (que seria o industrial) e um capitalismo ruim (que seria o financeiro). A contradição estrutural que está na base da crise é aquela, classicamente marxista, entre desenvolvimento das forças produtivas e relações (capitalistas) de produção. Se essa contradição - como dissemos - é clássica, sua mecânica é completamente nova: as forças produtivas hoje são aquelas de um trabalho mobilizado diretamente dentro da sociedade, sem passar pela relação salarial formal. Quer dizer, o trabalho que constitui as forças produtivas contemporâneas, por um lado, é de tipo cognitivo, afetivo, linguístico, terciário e, pelo outro, precário, não reconhecido, flexível, formal e informal ao mesmo tempo.

Diferentemente do que acontecia no regime industrial, que acabou implicando numa relação entre “inclusão” e “subordinação” do trabalho, o capitalismo flexível, globalizado e financeirizado “inclui” (os excluídos) sem eliminar (ou diminuir) a “exclusão”. A base do novo regime de acumulação é essa. Por um lado, as novas relações sociais de produção investem a nossa vida como um todo (e não apenas o tempo de trabalho); por outro, não se reconhece (nem protege) a dimensão produtiva de nossas vidas. Isso se traduz em uma série de contradições que já encontramos nas chamas “bolhas” das Bolsas de Valores. Lembremos a bolha da New Economy: a hiper-valorização dos ativos empresariais ligados às novas tecnologias da informação e das redes desmoronou diante da incapacidade capitalista de eliminar e/ou marginalizar as formas de cooperação que caracterizam a rede: a gratuidade, o copyleft, a ética hacker do trabalho colaborativo em rede. A crise do subprime é de uma intensidade ainda maior porque ela não se limita a um segmento específico (como era a New Economy), mas é o fato do mecanismo geral de governança do capitalismo global: a relação crédito/débito. Ao passo que a precarização do trabalho e a privatização dos serviços se afirmavam como principais tecnologias de comando, a expansão da base do crédito ia substituindo a dinâmica dos salários reais. A expansão do crédito se torna fundamental e obrigatória: porque ele substitui e/ou complementa salários cada vez mais precários, porque a privatização transforma os serviços de saúde, educação, moradia etc., em mercadorias às quais se terá acesso por meio do crédito (e da capitalização, como no caso das aposentadorias) e, enfim, porque - reciprocamente - a produtividade do trabalho (o desenvolvimento das forcas produtivas) passa a depender ainda mais do que antes, do acesso a esse conjunto de serviços.

Capitalismo industrial e finanças se misturam e são indistinguíveis

A expansão das finanças, quer dizer, a expansão da base financeira, não é nem a causa dos problemas nem o resultado da cobiça dos financistas. Por um lado, queremos dizer que os financistas não são mais gananciosos do que os industriais e, pois, que não há um lucro que seria melhor do que o outro, pois sempre se trata da expropriação pelos poucos da riqueza produzida pelos muitos; a chegada da crise no Brasil mostra muito bem que capitalismo industrial e finanças se misturam e são indistinguíveis: são grupos industriais produtores de commodities que quase quebraram por causa de suas especulações financeiras (Votorantim, Sadia, Aracruz).

Por outro lado, a expansão financeira é mais um sintoma do que uma causa. Um sintoma que não deixa de ser violento, das novas formas de exploração. Vejam bem, dizer isso não significa reduzir o julgamento ético sobre a violência intolerável do mecanismo financeiro, pelo contrário, significa amplificá-lo, atribuindo-o ao capitalismo como um todo e não a sua forma degenerada. A crise do subprime é, por um lado, o desmoronamento da ilusão de resolver pelo crédito securitizado a incapacidade dos salários dos pobres e dos imigrantes de pagar o acesso à moradia. Pelo outro, a transferência da precariedade das condições de trabalho no nível da precariedade da própria base financeira: os ativos se tornam tóxicos e somente os governos podem digeri-los.

O capitalismo pode, claro, se regenerar. Mas, por enquanto, ninguém sabe como. Essa incerteza não é apenas uma questão de prazos. Há alguns impasses que não tem solução. Vejamos os dilemas de Barack Obama diante da quebra (que era anterior) da indústria automobilística norte-americana. Salvá-la parece problemático em termos econômicos e sociais. Deixá-la falir também! Como é possível sair desse impasse? Só por meio de inovações radicais, das quais apenas os movimentos sociais são portadores. Lembremos, entre o G8 e o G20 há as manifestações de Seattle e Genova bem como os fóruns sociais mundiais de Porto Alegre. Os movimentos são fundamentais para sair democraticamente da crise porque só eles são capazes de constituir condições novas, isto é, de uma dinâmica constituinte. Nesse sentido, poderíamos dizer que uma das maiores ameaças - no Brasil - à saída da crise está na criminalização dos movimentos (do MST em particular) conduzida pelo Presidente do STF.

Não é um problema de justiça (ou seja, no fato de haver dois pesos no uso da Constituição: seu rigor é invocado para reprimir os sem-terra e suas garantias para proteger os Crimes do Colarinho branco), mas de constituição. A Constituição, a Lei da lei, só pode ser a partir de um processo constituinte, quer dizer, daquele momento onde a fonte (a legitimidade) e o direito (a lei) coincidem. No Brasil contemporâneo, não precisamos abrir muitos livros de constitucionalismo para lembrar as duas configurações (opostas) dessa situação: uma é aquela do AI5, ou seja, do Estado de Exceção, onde o rigor da Lei aparece como intensidade da decisão, efetividade sem legitimidade, onde a Lei é, na realidade, lei da Força (não é por acaso que os mesmos meios de informação que tanto sabatinam o presidente do STF sejam tentados de fazer uma revisão histórica da Ditadura militar, chamando-a de DitaBranda); a outra é aquela da Constituinte de 1988, da radicalização democrática que os movimentos produzem pela participação e a produção da sociedade.