Monday, May 18, 2009

Toni Negri: do fim do socialismo à nova gramática do político* (Saverio Ansaldi, Revista Multitudes, 2009, 1)

Posto aqui hoje uma mensagem, de trabalho, para a co-produção, acolhendo a demanda da Caia...

Boa leitura!!

---------- Forwarded message ----------
From: Caia Fittipaldi
Date: 2009/5/17
Subject: [Enxame_nomade] "Toni Negri: do fim do socialismo à nova gramática do político" [Saverio Ansaldi, Multitudes, 2009, 1 (traduzido)]
To: LISTA ENXAME - Universidade Nômade


Traduzi aí -- que achei ótimo.

Queria que alguém que entenda do riscado, por favor, desse uma boa lida, pra ver se tá tudo bem.

Corrijam e ME DEVOLVAM, plíz, pra eu ter versão corrigida e distribuir. 8-)


+++++++++++++++++++++++++++++++

Toni Negri: do fim do socialismo à nova gramática do político*
Saverio Ansaldi, Revista Multitudes, 2009, 1
http://www.cairn.info/revue-multitudes-2009-1-page-105.htm

Saverio Ansaldi (Maître de conférences na universidade Montpellier III. Autor de La Tentative schellingienne. Un système de la liberté est-il possible? (L’Harmattan, 1993); Spinoza et le baroque. Infini, désir, multitude (Kimé, 2001) ; Nature et puissance. Giordano Bruno et Spinoza (Kimé, 2006).
Do comitê editorial de Multitudes.)

"O que significa construir democracia e liberdade, igualdade e riqueza num mundo em que o capitalismo ainda se crê capaz de asfixiar e reduzir a cinzas qualquer capacidade de resistência?"[1]

Como podemos, no quadro fixado pela globalização política e econômica, inventar novas formas de vida e emancipação – espaços reais de subjetividade?

Para tentar responder essas perguntas, Toni Negri nos obriga a enfrentar o passado, para construir outro futuro. Em seus dois livros mais recentes, Goodbye Mister Socialism (Paris, Seuil, 2007) e Fabrique de porcelaine. Pour une nouvelle grammaire du politique (Paris, Stock, 2006), apresenta-nos, de fato, uma dupla cartografia conceitual, incluindo uma análise da modernidade e uma construção alternativa da pós-modernidade. O ponto de partida da argumentação de Negri é radical:

"No mundo da subsunção real da sociedade sob o capital, que é o mundo em que vivemos, já não há 'fora'. Todos vivemos 'dentro' e não há 'fora'; estamos mergulhados no fetichismo da mercadoria – e não há qualquer possibilidade de recorrer a qualquer coisa que pudesse representar a transcendência. A natureza e o homem já foram modificados pelo capital."[2]

O horizonte da subsunção real permite, segundo Negri, por à luz a diferença constitutiva entre modernidade e pós-modernidade, a partir, precisamente, da possibilidade de avistar uma transcendência política ou uma exterioridade normativa em relação aos modos de produção capitalistas.

Qual foi, de fato, o projeto político da modernidade "socialista"? Construir um "fora" a partir da necessidade de uma revolução do Estado e de governo capitalista planificado. A experiência socialista sintetiza, aí, a potente dinâmica da modernidade – o significado visível e estrutural de sua história.

A construção do socialismo real representou uma necessidade terrível e um teste crucial ao qual o movimento operário não se pôde de modo algum subtrair.

O "fora" da revolução passava imperativamente pela determinação sistêmica e monárquica [orig. régalienne] de uma economia planificada. Pode-se assim dizer que o stalinismo é um fenômeno interno e imanente à modernidade europeia e não constitui, desse ponto de vista, nenhuma espécie de exceção ou erro trágico da história. Ao contrário disso, expressa a racionalidade – dura e lúcida – da prática revolucionária.

Ora, por que essa experiência política, total e única, não produziu os efeitos esperados?

[Porque] "O sistema, em sua ilusão e em sua loucura, pretendia que seria necessário ceder a liberdade, para conseguir defender a revolução. (...) Os dirigentes soviéticos não caíram, evidentemente, por causa da cortina de ferro, mas porque construíram uma enorme inteligência coletiva a qual não souberam oferecer meios livres (insisto fortemente nessa palavra) de expressão".[3]

A necessidade da revolução moderna – quer dizer, de constituir um "fora" capaz de transformar em profundidade a realidade da exploração capitalista – perdeu a oportunidade de também definir práticas inovadoras de liberdade. Com a queda do muro de Berlim e o fim do "século curto", estamos outra vez ante a necessidade/possibilidade de "fazer história": de criar outros acontecimentos e de inventar novas formas de emancipação e resistência.

Qual é precisamente o contexto de nossa história presente? É o contexto da "biopolítica", isso é, da pós-modernidade e de seus modos globalizados de produção. Não se pode mais sonhar com um 'limite' externo, do mundo, que dê sentido à prática revolucionária do Estado. Mas, por outro lado, podemos, na densa e plena imanência da pós-modernidade, construir formas de ação que levem a constituir efetiva liberdade comum e partilhada.

De fato, "o mundo definido pela subsunção real da sociedade sob o capital coagula e neutraliza, sem dúvida, as possibilidades de relação, mas não a resistência, a liberdade como potência, ou a constituição de um novo ser".[4]

Apoiando-se para essa reflexão nos últimos trabalhos de Deleuze e de Foucault, Negri opera verdadeira mudança de paradigma epistemológico na definição de "ação política". Trata-se, de fato, da primeira condição para fazer aparecer a implicação construtiva entre a biopolítica e a pós-modernidade.

Afirmar que a subsunção real determina os campos de lisibilidade e compreensibilidade da pós-modernidade é um desdobramento da estratégia complexa da biopolítica, substituindo os procedimentos disciplinares e regulatórios do Estado moderno (inclusive do Estado revolucionário e socialista). A estratégia biopolítica, constituída pelo entrecruzamento e agenciamento de práticas, saberes e instituições, permite encontrar, no próprio seio da pós-modernidade, os novos instrumentos necessários para definir uma outra prática revolucionária.

"Para nós, a biopolítica (...) é a tentativa de construir pensamento a partir dos modos de vida – sejam individuais ou coletivos (...) A biopolítica (...) é o terreno reencontrado de todo o pensamento político, na medida em que é atravessada pela potência dos processos de subjetivação (...). Se a vida não tem "fora", se, consequentemente, tem de ser vivida totalmente "dentro", a única dinâmica possível dessa vida é a dinâmica da potência".[5]

Essa potência biopolítica de subjetivação é a potência do trabalho imaterial.

Negri sublinha, sobre isso, a "reversibilidade" da biopolítica. De fato, "a biopolítica é um contexto contraditório na/da vida; por sua própria definição, esse contexto representa a extensão da contradição econômica e política sobre todo o tecido social; mas representa também a singularização das resistências que o atravessam permanentemente".[6]

A atividade produtiva dos sujeitos desdobra-se no contexto rico e articulado da subsunção real; e é precisamente nesse contexto da atividade biopolítica que a potência afirma-se e expressa-se como trabalho imaterial – quer dizer, como constituição de redes de afetividade e de cooperação.

As novas formas de vida produzidas pela globalização econômica são inseparáveis dos novos modos de produção: a dinâmica da implicação entre esses dois fatores determina a possibilidade de antever "um dispositivo virtualmente antagonista e capaz de contradizer qualquer síntese capitalista".[7]

A potência do trabalho imaterial e vivo não representa nesse sentido algum outro "fora" da globalização capitalista: a possibilidade de afirmá-la não instaura qualquer "limites" ou fixidez normativas, mas, ao contrário, instaura uma tendência "ontológica" interna à subsunção real que a todo instante quebra sua hegemonia. A noção de resistência adquire todo o seu significado justamente a partir desse pressuposto: a construção singular e coletiva da liberdade ultrapassa sempre as modalidades de exploração capitalista, instaurando uma estratégia de "diferença criativa" que desloca do interior sua lógica e sua coerência econômicas.

Como se afirma a potência do trabalho imaterial, quais as subjetividades que encarnam as formas vivas de sua constituição? Para responder essa pergunta, Negri recorre a dois temas: o tema da multidão e o tema do comum.

"A multidão não é apenas um conceito; é uma nova realidade. Para responder à questão de se a multidão é anticapitalista ou não, é preciso analisar o próprio movimento da multidão, não o conceito [ …]. O que torna a multidão subjetivamente eficaz e objetivamente antagonista é a emergência do comum, que nasce na multidão (tanto do ponto de vista produtivo, como do ponto de vista político (...). O comum é hoje a condição de todas as valorizações sociais; do ponto de vista político, é a forma mediante a qual a subjetividade organiza-se. Já não se trata de procurar afirmar alguma unidade de ação, mas de mostrar, já operante, a coerência de um agenciamento".[8]

A articulação entre a multidão e o comum permite assim definir o que se pode designar como uma nova teoria da potência antagonista. A cooperação múltipla do trabalho imaterial determina a base objetiva necessária à expressão constituinte da multidão – à afirmação de sua subjetividade. Mas essa subjetividade não se apresenta como um "sujeito" abstrato ou universal englobante – como "classe" ou como "conjunto".

A subjetividade da multidão atravessa todas as singularidades que a compõem – num processo infinito de variação contínua. A potência da multidão é necessariamente comum e biopolítica: é na ilimitada extensão da subsunção real, que multidão inventa suas formas de liberdade – apoiando-se na cooperação produzida pelo trabalho vivo e imaterial.

"O conceito de multidão é o conceito de um conjunto de singularidades, um tecido cooperativo que entrelaça toda uma infinidade de atividades singulares. Nesse terreno é que se trata, precisamente, de reconstruir, melhor: de re-elaborar, de modo aberto, o conceito de "comum".[9]

As formas da vida da multidão não determinam uma separação entre sua potência efetiva e seus modos de constituição – seu trabalho. O trabalho vivo é a potência da multidão – sua liberdade imanente ao capital, capaz de produzir e de criar os novos espaços antagonistas. De fato,

"o capital variável, i.e., a força de trabalho – ganhou uma certa autonomia (...). O comum é a soma de tudo que é produzido pela força de trabalho (Kv) independentemente do capital constante, capital total (Kc) e contra esse último."[10]

Seguem-se daí duas consequências fundamentais.

(1) "O comum" biopolítico da multidão substitui doravante a dicotomia moderna público/privado. A potência comum da multidão é prova da crise definitiva e irreversível da forma-Estado moderno, fundada sobre a apropriação paralela, privada e pública, da riqueza produzida pelo trabalho vivo.

A "disciplina institucional" do Estado formaliza as modalidades dessa dupla exploração: de um lado, pelo viés do Direito privado que regula as relações entre os cidadãos-produtores; de outro, ao instaurar uma fratura superestrutural entre (i) a subjetividade produtiva daqueles cidadãos-produtores e (ii) o capital (o Direito público).

A dialética entre Direito privado e Direito público sintetiza a especificidade política da modernidade – o poder estatal de mediação que se apropria da atividade imediata das subjetividades.

O problema que surge aqui, diz respeito à invenção de um Direito comum da multidão. Quais são os novos direitos da multidão? Quais as novas formas jurídicas adequadas à potência comum do trabalho vivo e cooperativo? De fato

"o Direito público apresenta-se hoje como expressão do biopoder; inversamente, o Direito comum apresenta-se hoje como expressão biopolítica da multidão". Por isso, "o Direito comum só é pensável a partir da destruição da exploração – seja pública seja privada – e da democratização radical da produção".[11]

Os novos direitos comuns da multidão não são tentativa de mediação jurídica entre o privado e o público estatal. Ao contrário, afirmam-se como irrupção da potência criativa do trabalho vivo, na esfera globalizada do poder imperial.

Liberdade de ir e vir, renda mínima, acesso garantido às novas tecnologias, mobilidade profissional – esses são os direitos comuns que é preciso conquistar e inventar mediante práticas de resistência e de antagonismo.

Dessa perspectiva, Negri insiste particularmente sobre a possibilidade de utilizarem-se práticas da governança, invertendo a ideia tradicional.

"Parece-me que, de fato, deve-se estabelecer completamente o conceito de governança – e sem exceção – a partir de uma pragmática do exercício do comum".[12]

A governança pode efetivamente transformar-se em estratégia biopolítica antagonista, ocupando os espaços e os domínios socioeconômicos que a crise da forma-Estado está abandonando à gestão capitalista. As formas de vida da multidão podem apropriar-se dessas práticas e deles fazer instrumentos poderosos de democracia e de justiça.

(2) As metamorfoses da atividade produtiva permitem definir as formas de invenção do comum. Esse é sem dúvida o aspecto mais radical e inovador da reflexão de Negri.

"Às transformações fetichistas do capital opõem-se as metamorfoses biopolíticas (técnicas, políticas, ontológicas) da força de trabalho. Quem queira encontrar o valor de uso, não o procure na natureza, mas na história, nas lutas, na transformação ininterrupta dos modos de vida."[13]

Sobre isso, Negri fala de uma "nova antropologia" da metamorfose:

"O problema de um novo 'comum'" é posto mediante o problema da hibridação: uma nova 'natureza' – realmente muito estranha, posto que nada nela apresenta-se como primordial ou originário – que sempre é resultado de produção contínua."[14]

Pode-se imediatamente antever uma "democracia da metamorfose" ou, dito de outro modo, uma democracia absoluta capaz de levar em conta, na constituição real das instituições, as transformações biopolíticas da multidão?

A hipótese que Negri propõe é audaciosa e apaixonante: já não se trata de reencontrar, na e pela prática política, uma naturalidade ou uma antropologia originais – sinônimas de "justiça"; trata-se de atravessar a, e apropriar-se da, artificialidade e da cooperação do trabalho vivo, para fazer dele a prática democrática da multidão. É o que Negri chama de "o êxodo": a democracia da multidão como potência constituinte da metamorfose, como transformação incessante dos "corpos-afetos" do trabalho imaterial.

Trata-se assim de construir uma nova relação entre a afirmação dos corpos singulares e sua expressão multitudinal – como biopolítica da atividade comum.

A materialidade das formas de vida encontra aqui a artificialidade dos novos modos de produção – para construir uma outra nova natureza humana, biopolítica e potente, livre e comum.

Uma natureza humana como "máquina de guerra" desejante e antagonista, capaz de metamorfosear-se nessas práticas e nesses conhecimentos, sempre capaz de inventar – contra a gestão capitalista da vida – espaços comuns de subjetivação.

"A subjetividade política apresenta-se como um corpo, porque é metamorfose permanente de corpos: é, precisamente, um fazer. (...) A subjetividade que se faz corpo político e o corpo que se faz subjetividade política misturam-se um no outro, na progressão do fazer-multidão".[15]

Essa "nova aliança" entre o social e o político apela à necessidade de dar-se nova definição à "decisão" que institui as metamorfoses democráticas da multidão. Negri sublinha, quanto a isso, o aspecto inovador e antecipador das lutas e movimentos no horizonte do Império.

De Seattle a Paris, passando por Gênova e Davos, as multidões produzem "acontecimentos" de antagonismo biopolítico que quebram a hegemonia do desenvolvimento capitalista e das forças de controle. As decisões da multidão instauram a democracia do comum, quer dizer, a criação de instituições que refletem os direitos da potência constituinte da metamorfose.

"Acreditamos, de fato, que as instituições podem ser diferentes das do capitalismo: têm de ser inventadas pelo próprio poder constituinte e representar o primeiro elemento de organização multitudinal (...). É pois possível formular, a partir desses elementos, nova definição do conceito de "revolução". Nossa hipótese é a seguinte: a revolução é uma aceleração do tempo histórico, realização de uma condição subjetiva, um acontecimento e uma abertura que contribuem para tornar possível produzir subjetividade de modo irredutível e radical."[16]

A nova gramática do político proposta por Negri nesses dois livros é aprofundamento e desenvolvimento decisivos, em relação às teses expostas em Império e Multidão. A afirmação das formas de vida da multidão, como biopolítica viva, enriquece-se aqui com reflexão original e profunda sobre a relação determinante entre o conceito de "metamorfose" e de "Direito comum". O fim definitivo do socialismo moderno já faz ver novas possibilidades de transformação política, ligadas à definição de uma antropologia da potência e de uma economia da produção cooperativa.

+++++++++++++++++++++++++++

* Tradução para o português do Brasil, de Caia Fittipaldi, maio-2009. Comentários e correções são bem-vindos para caia.fittipaldi@uol.com.br.

[1] A. Negri, Fabrique de porcelaine. Pour une nouvelle grammaire du politique, Paris, Stock, 2006, p. 125. Sobre o livro, ver http://lists.indymedia.org/pipermail/cmi-santamaria/2008-October/1012-cp.html

[2] Ibidem, p. 34.

[3] Ibidem, p. 34.

[4] A. Negri, Fabrique de porcelaine, op. cit., p. 34.

[5] Ibidem, p. 46.

[6] Ibidem, p. 50.

[7] Ibidem, p. 58.

[8] A. Negri, Fabrique de porcelaine, op. cit., p. 86.

[9] Ibidem, p. 97.

[10] Ibidem, p. 91.

[11] Ibidem, p. 99-100.

[12] Ibidem, p. 188.

[13] Ibidem, p. 114 ; Cf. também Goodbye Mister Socialism, op. cit., p. 258.

[14] A. Negri, Fabrique de porcelaine, op. cit., p. 143.

[15] Ibidem, p. 217.

[16] Ibidem, p. 201 ; Cf. Goodbye Mister Socialism, op. cit., p. 28-30.


_______________________________________________________________________
Para desligar-se da lista Enxame Nômade, por favor acesse: http://listas2.rits.org.br/mailman/listinfo/enxame_nomade
Enxame_nomade mailing list
Enxame_nomade@listas2.rits.org.br

No comments: