Wednesday, April 14, 2010

MundoBraz em busca de uma esquerda pós-moderna

Acaba de sair no Outras palavras, mais uma resenha sobre o mais recente livro de Giuseppe Cocco, Mundobraz. Puxo ela pra cá também. Mas puxei com tudo, rsrsrs inclusive a imagem que acompanha a postagem do texto lá ... rsrsrs... Boa leitura!


MundoBraz em busca de uma esquerda pós-moderna



Por Bruno Cava

(Imagem: “Antropofagia 3″, de Túlio Tavares)

Escrito pelo franco-italiano Giuseppe Cocco, radicado no Brasil desde os anos 90, MundoBraz é uma obra complexa que enfrenta os dilemas contemporâneos a partir do recente processo democrático brasileiro. O devir-Brasil, no título, refere-se ao surgimento de novos sujeitos sociais, programas políticos e formas de luta, repercutindo em múltiplas conquistas no campo da geração e distribuição de renda, da democratização dos bens culturais, das ações afirmativas e da valorização das periferias e comunidades pobres das metrópoles. O objetivo principal do livro reside em compreender as transformações econômicas, políticas e culturais do Brasil, sem perder de vista a sua articulação com fenômenos globais (o devir-mundo).

Graduado em Ciências Políticas pela Universidade de Paris 8 (Vincennes) e doutorado em História Social por Paris 1 (Sorbonne), Cocco é professor titular da UFRJ e mantém efervescente atividade intelectual e política. Além de editar publicações de esquerda, como as revistas Global/Brasil, Lugar Comum e a festejada Multitudes (Paris), ele também é autor de Glob(AL): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005), escrito a quatro mãos com o filósofo, amigo e correligionário Antônio Negri, além de Mundo real: Socialismo na era pós-neoliberal (L&PM, 2008), com o ministro da Justiça, Tarso Genro. Todos os livros de Cocco repercutem a sua prática concreta na militância pelo acesso universal aos direitos, fazendo dele um intelectual engajado que escasseia nos meios acadêmicos mais “duros”. MundoBraz examina problemáticas diversas, apontando as oportunidades e vicissitudes de cada luta concreta, porém sem conclusão definitiva, como uma espécie de work in progress, concomitante à vida militante. Portanto, não se deve esperar uma exposição linear e sistemática gradus ad Parnassum, mas um livro cuja (dis)forma decorre da urgência das lutas que é o seu conteúdo mesmo.

As obras de Giuseppe Cocco não se restringem a um campo científico específico. Na realidade, constroem-se na interdisciplinaridade. Cada assunto é abordado de vários pontos de vista, num perspectivismo fértil, como em Glob(AL), onde reina a imaginação livre, não-dogmática, transitando por temas tão variados quanto economia política, filosofia, sociologia, antropologia e literatura. MundoBraz dá continuidade às intervenções de “Glob(AL)”, atualizando-as com base nos avanços do processo político e social do Brasil no intervalo entre a publicação dos livros (2005 e 2009). Por conseguinte, desenvolve-se no livro de que modo os sucessos e conquistas no Brasil decorrem de uma nova concepção de trabalho e cidadania, que pode servir como exemplo para as esquerdas do mundo. É essa a centralidade mundial do Brasil em pauta: a sua singularidade como chave para o discurso e a prática dos movimentos de emancipação no contemporâneo, tão solapados alhures pelo recrudescimento da xenofobia, do racismo e do fosso social entre incluídos e excluídos do sistema econômico. Nesse sentido, MundoBraz aprofunda o livro anterior de Cocco, Mundo real: Socialismo na era pós-neoliberal, cujo objetivo declarado foi a renovação do pensamento de esquerda e das utopias socialistas.

Ao contrário de parte da literatura filosófica (pretensamente) de vanguarda, travestida ora de cabotinismo acadêmico, ora de obscuridade udigrudi, – em ambos os casos para camuflar a indesculpável carência de conteúdo e interesse prático, – o livro de Cocco ancora-se na materialidade das lutas. Essa “ancoragem”, – no sentido que lhe confere Barthes, – refere-se à força textual em entretecer teoria e prática, em simultaneamente dar vida aos conceitos e estrutura conceitual à vida. Em conseqüência, se por um lado, em MundoBraz abundam conceitos tais como devir, multiplicidade, biopolítica, multidão e precariado produtivo, por outro eles se acoplam a problemas concretos, tais como a distribuição de renda, ações afirmativas, acesso universitário, governança latino-americana e democratização cultural. Portanto, o instrumental teórico presta-se mais como caixa de ferramentas para a prática do que como totalização de uma ideologia ou visão de mundo. A prática que subjaz aos discursos e neles transpira, por sua vez, permite à teoria ultrapassar os muros e démarches para ligar-se efetivamente à organização (política) da produção. Nesse intento, assim como em Glob(AL), MundoBraz se propõe a mapear o terreno e organizar as lutas do presente.

Ao invés de uma cartilha sobre “o que fazer”,
disparar propostas em várias direções do brasilianismo,
da antropofagia à cosmologia ameríndia

A figura do mapeamento define bem a poética empregada por Cocco em MundoBraz, na sua constituição dos espaços conflitivos. Porque menos do que uma cartilha monológica sobre “O que fazer”, ao modo leninista, o caso é disparar propostas em várias direções, apresentando múltiplos caminhos e desafios, apontando para diversos tesouros do brasilianismo – que vão da antropofagia oswaldiana à cosmologia ameríndia.

A maior referência teórica de Cocco é a filosofia política de Antônio Negri. Este pensador italiano compartilha da militância com Cocco desde os movimentos da autonomia operária na Itália dos anos 1970, quando uma insurreição emergiu das fábricas, – à margem e mesmo contra sindicatos e partidos de esquerda, – e partiu para a ação direta, com “greves selvagens” que alternavam sabotagem da produção e confrontos de rua, sempre sob violenta reação do sistema policial-penal. Um movimento para proclamar que a meta do operário não é somente granjear melhores salários e condições de trabalho, mas abolir a sua própria condição de operário.

Como resultado da ebulição social dessa época, Negri chegou a ser condenado a treze anos de prisão na Itália, pena que cumpriu a partir de 1997. Defensor de vias alternativas para o capitalismo contemporâneo e de uma sociedade democrática global sem fronteiras, Antônio Negri publicou diversas obras traduzidas para o português e ficou mais conhecido pela trilogia escrita com o professor americano de literatura Michael Hardt: Império (Record, 2004), Multidão (Record, 2005) e Commonwealth (Harvard, 2009, sem tradução). De Negri, Cocco herdou a ontologia positiva de um materialismo radical, enraizado em Maquiavel, Spinoza e Marx, mas também a o estilo grandiloqüente (especialmente nos títulos) e a estruturação por assim dizer pictórica, que condensa muitos argumentos e conceitos em pequenos espaços. Reverbera assim, em MundoBraz, um otimismo contagiante, que resta claro nos arremates das teses, na síntese de aforismos, nas filiações com a antropofagia e o tropicalismo, tudo isso num tom narrativo próximo ao épico que os leitores de Império (2000) e Multidão (2004) irão reconhecer.

Trata-se de livros com uma abrangente proposta para a ação política, que pregam uma nova ordem mundial pautada por redes colaborativas transnacionais de ação direta e produção político-cultural. Um de seus principais argumentos reside na identificação da pós-modernidade como uma nova etapa do capitalismo. Chamada de sociedade pós-industrial ou pós-fordista, ela enseja uma renovada teoria de valor e um novo conceito de classe proletária. Destarte, o trabalho imaterial (serviços, informação, marketing, circulação etc) torna-se a referência determinante para as lutas e o caminho para a construção do sujeito revolucionário pós-moderno: a “multidão”. Esta se constitui do conjunto de singularidades produtivas que não se totalizam em “povo”, nem se confundem em “massa”, e tampouco se reduzem a “indivíduos” desconectados. Articulados na multidão, os “nômades” constituem os agentes singulares dessa democratização radical baseada no trabalho não-subordinado e autônomo, organizado pela autogestão, que instauram a vida mesma na produção, sempre combinada e comum de valores, afetos, bens e informações.

E é aí também, na formulação conceitual do sujeito-multidão na sociedade pós-industrial, que a ortodoxia de esquerda torce o nariz. Se Glob(AL) foi recepcionado com relativo desdém pela intelligentsia brasileira, foi menos por sua ousadia e fecundidade como ferramenta, do que pela proteção rancorosa de “reservas de mercado” na tradição política de esquerda. Esta ainda se confrange ante essa escola, não somente pela abjuração sonora ao socialismo real (um dos livros de Negri intitula-se Goodbye Mr. Socialism), mas principalmente por seu desprendimento ao tratar temas considerados anátema, tais como mídia, consumo, globalização, trabalho informal e renda universal. Se para os conservadores de esquerda, tais temas sempre significam e sustentam o capitalismo neoliberal, para Negri e Cocco não são incompossíveis com a sua visão de democracia radical, e identificam linhas de fuga em todos os referidos temas, que devem ser exploradas e fortalecidas.

Para Cocco, boa parte da esquerda brasileira anquilosa-se em empoeiradas ideologias, não renova o arsenal teórico e assim se recusa a conceber os novos sujeitos políticos e sociais. Ficam desamparados, portanto, para explicar os avanços da sociedade brasileira na última década, quanto à melhor renda, consumo, produção cultural e educação; e mesmo em aspectos macroeconômicos como o crescimento do PIB e a maior credibilidade financeira do país. É por isso que a obra de Giuseppe Cocco, – assim como a trilogia de Negri e Hardt, – soa tão herética, quando transposta para a análise da realidade brasileira. Ela se propõe a explicar o que boa parte da academia não explica.

Com efeito, um dos maiores méritos dessa abordagem heterodoxa está em passar em diagonal pela dialética entre estado e mercado. No debate do estatuto do trabalho, Giuseppe investe numa via alternativa entre as panóplias do neoliberalismo e do nacional-desenvolvimentismo. Pelo primeiro, entende-se a técnica de governo baseada na fragmentação do trabalho e na gestão econométrica do risco, que administra a insegurança dos “mercados” e acentua a desigualdade entre quem está “dentro” e quem está “fora” do sistema produtivo. Pelo segundo, as técnicas do neokeynesianismo, de raízes estatistas e industrialistas (“fordistas”), numa ortodoxia de esquerda que incensa o dito “setor produtivo de base” (industrial), o emprego formal e a aliança entre estado forte e empresários industriais, tudo em louvor ao desenvolvimento nacional. Desta vez, o antagonismo não-dialético de MundoBraz rejeita ambas as posições discursivas, aparentemente opostas, ressaltando-lhes uma cumplicidade material.

Para Cocco, emancipação social deve se traduzir em
remuneração da vida, políticas sociais, trabalho livre.
Tal postura desagrada a esquerda conservadora

Porque a posição de Cocco filia-se às correntes de pensamento que têm no trabalho não-subordinado e autônomo o fundamento da atividade produtiva. Isto significa propugnar por políticas de renda universal, radicalizar programas como a bolsa-família e universalizar o acesso à produção, distribuição e consumo de bens culturais (inclusive carreiras universitárias). O que é inaceitável tanto para o neoliberalismo, a reclamar do decorrente déficit financeiro e implosão do sistema de risco, quanto para o desenvolvimentismo, que tacha a transferência de renda de “assistencialismo” e não anota ganho duradouro à economia sem um planejamento e subsídio estatais ao “setor produtivo”. Para Cocco, na sociedade pós-industrial, não há que se bitolar mais nos slogans do desenvolvimento, do emprego formal e da soberania nacional, mas recolocar a emancipação social em termos de remuneração da vida (bio-renda), política social como cerne da política econômica, trabalho livre e governança global pelos muitos – temas detalhados em MundoBraz.

Embora diversificado, o mapa de Cocco não se furta a oferecer uma rosa-dos-ventos nítida, contornando qualquer esboço de enciclopedismo ou relativismo moderninho e sem brilho. Os vários territórios desenhados são divididos em espaços antagônicos, em que se contrapõem discursos intimamente atrelados a práticas concretas da atualidade. Esse dualismo permite ao professor da UFRJ conferir um sentido político aos conflitos que seleciona, conectando as lutas em várias regiões numa rede articulada de resistência. Um procedimento dualista, porém nada dialético: longe de sintetizar “pólos”, o autor recodifica-os, demonstra que amiúde o que se conhece por “esquerda” e “direita” coabitam a mesma agenda antidemocrática, e por fim afirma claramente o seu lugar prático-discursivo na contenda, isto é, afirma a sua diferença.

Por conseguinte, às teorias da favela-inferno, o autor opõe a comunidade dos pobres também como espaço constituinte de cultura e resistência. Aos estudos da favelização como praga urbana a erradicar-se (o “poder do crime”), que geralmente sustentam o discurso do medo e da punição permanente (o “crime do poder”), o autor salienta a veia produtiva e potente dos movimentos das periferias, na sua reinvenção de formas de vida – que o autor não hesita em promover. E o citado antagonismo teórico acede ao nível concreto da vida dos cidadãos, pois as diferenças teóricas repercutem nas políticas públicas: a aplicação cerrada e sistemática do controle policial e do extermínio versus a valorização das periferias por medidas de urbanização, moradia, acesso gratuito à internet e investimento na produção e distribuição da cultura e das artes.

Ao mesmo passo, o debate ao redor do racismo é mapeado e polarizado pelo antagonismo entre os defensores do mito da democracia racial, cuja argumentação circula ao redor da igualdade formal e da meritocracia abstrata, e aqueles que sustentam medidas reais para corrigir a aguda desigualdade social modulada pela raça. No que já é marca registrada de suas publicações, Cocco desconstrói as teses que negam a existência de raças, sob o bordão do “não somos racistas”, bem como o discurso liberal a-histórico e a sua concepção individual de preconceito – incompatíveis com uma análise materialista, perante a qual o racismo é um dispositivo social estruturante. Novamente, o autor coloca-se de modo cristalino numa agenda política atual, urdindo mais um nó da rede militante.

Em todos esses assuntos, – periferias e metrópole, questão racial e estatuto do trabalho – as referências adotadas pró ou contra os objetivos políticos do autor assumem um perspectivismo típico de Nietzsche ou Deleuze. Ou seja, a convocação de autores os faz atuar personagens de um teatro filosófico no qual, como no discurso indireto livre, o narrador fala em seu nome por meio dos outros. Dialogicamente, narrador e personagens estimulam-se, na combinação (bom encontro) ou não (encontro ruim) de seus desejos, na formulação comum dos antagonismos políticos, numa polifonia à Bakhtin. Se, de um lado, o ímpeto aglutinador da exposição pode parecer autoritário, por instrumentalizar as citações para o projeto político/sistema conceitual do autor, de outro condiz com a concepção de produção em rede, na medida de sua abertura a pensadores tão diversos quanto Oswald de Andrade, Roberto Schwarz, Euclides da Cunha e Viveiros de Castro, dentre outros. Com efeito, em MundoBraz a apropriação torna-se aberta e multitudinária, visto que as inter-relações conceituais operam nos dois sentidos, como sésamo para novos territórios e lutas. E assim, ao invés de reafirmar narcisicamente a identidade do autor, elas conseguem manifestar a sua diferença. Ou seja, o autor-narrador se reinventa sucessivamente ao deixar trespassar-se pelo pensamento dos outros, com quem compartilha de afinidades eletivas.

Nos teóricos do “estado de sítio”, MundoBraz enxerga geração intelectual mortiça, para quem qualquer resistência
finda recodificada e invariavelmente anulada

Enquanto em Glob(AL) o principal eixo antagônico descortinava-se no diagnóstico/desmonte do nacional-desenvolvimentismo e dos mitos da igualdade racial, – tão presentes em esquerdas menos inovadoras, – MundoBraz polemiza diretamente contra uma nova e sofisticada estratégia discursiva. Trata-se da utilização, por uma parcela da esquerda intelectualizada, da ontologia negativa de Giorgio Agamben, filósofo cuja significativa penetração no meio intelectual consolidou-se com os livros Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (1995) e Estado de exceção (2003). Este autor popularizou-se com a sua tese sobre como, na atualidade, o estado de exceção tornou-se permanente e os dispositivos de controle difundiram-se pervasivamente sobre todos os aspectos da vida.

Em vários níveis de uma análise inegavelmente de fôlego (filosofia da linguagem, direito, literatura, política, teologia), esgueirando-se em meio a cipoal de referências (Kafka, Primo Levi, Walter Benjamin, Carl Schmitt, Paulo de Tarso), Agamben interpreta a sociedade contemporânea como a culminação de um longo processo hermenêutico de captura da vida, originado no berço da metafísica ocidental. Essa captura desnuda a vida progressivamente de qualificações políticas e inviabiliza a mudança e a resistência coletivas. Vive-se assim o eclipse da política e o fim da história, numa espécie de “morte de Deus” nietzschiana ou “clara noite do nada” heideggeriana. Para esse filósofo, na mais pessimista reflexão de sua obra tenebrosa, todo esse rolo compressor ontológico-político se realiza finalmente na tanatopolítica. É ela quem, modelada pelo campo de concentração, termina por reduzir-nos à vida nua, isto é, matável e insacrificável, exposta à violência sumária pelo poder soberano.

Pelo menos na academia brasileira, as zonas de sombra projetadas por Agamben aguçaram o spleen de uma geração intelectual mortiça, para quem tudo está perdido. Fortaleceu-se o argumento de que, na pós-modernidade capitalista, qualquer forma de resistência finda recodificada e invariavelmente anulada. Que a revolução nunca esteve tão distante, devido ao triunfo do neoliberalismo, da globalização predatória, da dissolução do sujeito político e da emasculação das lutas de esquerda. MundoBraz enfrenta-os ao polemizar nominalmente com a coleção “Estado de Sítio” (editora Boitempo), coordenada pelo uspeano Paulo Arantes e parcialmente inspirada pela obra agambeniana.

Cocco explica como a sofisticação dos argumentos encobre o fracasso dos projetos da ortodoxia socialista, cada vez mais melancólica, imersa numa atmosfera decadentista. Diante da redução das desigualdades, de transformações democráticas na política e da melhoria de todos os indicadores sociais, – realizações à revelia dos receituários de suas ideologias, – essa esquerda refugia-se na ontologia negativa, que tem em Heidegger a referência mais central. Em MundoBraz, o autor não somente ressalta a incompatibilidade formal da filosofia de Agamben com o nacional-desenvolvimentismo dessa mesma esquerda, mas também sublinha a esterilidade política e o imobilismo prático associados a conclusões apocalípticas sobre o fim da história como vitória do “anticristo” neoliberal. Tais pensadores aferraram-se à lógica do “quanto pior, melhor” e assim, como avestruzes contrariados, enfiaram as cabeças pensantes em buracos escuros do pessimismo filosófico.

Em atitude diametralmente contrária à paralisia, Cocco avança sobre terreno até então intocado em seus livros, ao resgatar a cosmologia ameríndia e a antropofagia andradiana. A primeira força é invocada pelo prisma da antropologia de Eduardo Viveiros de Castro e sua abordagem pós-estruturalista – bastante influenciada, aliás, pela filosofia de Deleuze. Após anos de interações e ambivalências junto de comunidades indígenas, Viveiros de Castro lhes identificou um perspectivismo radical – mais vital e impactante do que o seu equivalente ocidental nas filosofias da diferença. Esse perspectivismo – que o antropólogo crê denominador comum dos povos ameríndios como um todo – dissipa as divisórias entre humano e animal e desse modo embaralha referentes canônicos das ciências humanas e naturais. Cocco por sua vez apropria-se de Viveiros de Castro para a sub-trama mais arriscada e abstrata – e talvez menos rigorosa – de sua obra multifacetada. Trata-se de investir o perspectivismo ameríndio na desconstrução das dicotomias fundantes do pensamento ocidental: humano/não-humano (“máquina antropológica”), sujeito/objeto, cultura/natureza. Se a tarefa monumental não caberia no reduzido volume, pelo menos lampeja sobre as implicações ontológicas de um pensamento tão dissimilar ao nosso.

Por outro lado, seguindo a linha de Viveiros de Castro, “MundoBraz” abraça o mentor do modernismo literário brasileiro. Se para o citado antropólogo o perspectivismo ameríndio revigora a antropofagia em outros termos, como deglutição cultural do europeu colonizador, para Giuseppe dá respaldo à hibridização e à implosão de identidades engessadas. De fato, a beleza e a potência do manifesto antropofágico residem na sua dupla esquiva: seja da subjugação pela cultura branca “elevada” importada da Europa, seja de uma identidade nacional calcada sobre os mitos do indianismo, da democracia racial e das raízes tropicais.

Junto da Geração de 1922, Oswald foi tanto anticolonial quanto antinacionalista, contrapondo-se aos vendilhões europeizados e aos nativistas do movimento integralista. O que não significa ignorar o estrangeiro e o nacional, mas devorá-los indiscriminadamente e degluti-los para a criação de uma cultura híbrida e mestiça, simultaneamente local e global. Se iniciou a trajetória como escritor pequeno-burguês, embora insubmisso, libertário e extemporâneo, Oswald logo descobriu – no bom encontro com Pagu – que “o contrário do burguês não é o boêmio”, mas o militante materialista – transformação ética narrada nos romances da “Trilogia do Exílio” (1922, 27, 34). O seu satírico e expressivo “O Rei da Vela” (1937), na célebre montagem do Teatro Oficina de Zé Celso Martinez, tornou-se literalmente a peça de resistência dos tropicalistas, em 1967.

E é aí que o nomadismo de Deleuze, Negri e Cocco sintoniza-se com a arte libertadora e profundamente democrática que nasce com os modernistas, retumba pelo tropicalismo e ressurge no século 21, com a produção cultural das periferias, a expressão da Amazônia indigenista, a múltipla comunicação e colaboração da Internet, as redes de coletivos e movimentos minoritários que, no conjunto, ganham enorme dimensão política. Fica claro, em MundoBraz, que o devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil não devem ser entendidos (simplesmente) como a ascensão midiática, econômica ou geopolítica do país. Nem decerto como boutade publicitária do autor. O recente foco sobre o Brasil – futura sede da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016 – é mais efeito de superfície do que a essência de um fenômeno molecular.

Este se enraíza na aparição de novos atores político-culturais, articulados numa rede colaborativa, difusa e livre, que luta em comum por renda, liberdade e acesso aos direitos. Se por “devir” se entende um conceito de renascimento, o devir-Brasil renova no mundo um cadinho de elementos potentes, que vão da fome ontológica dos ameríndios aos pontos cantados de Iansã – deusa guerreira dos ventos da mudança. Nas suas páginas, MundoBraz invoca essa mesma força sincrética e transformadora, ao devorar o inimigo, varrer o pó de discursos encarquilhados e arejar o corpo e a mente de quem procura por mapas e caminhos para a ação política na pós-modernidade.

Bruno Cava, engenheiro e estudante de direito, participa da Universidade Nômade. Mantém o blog Quadrado dos Loucos (Literatura, jazz, xadrez, quadrinhos e crítica), atualizado quase diariamente. Edita a revista Enxame.

Túlio Tavares (site) é artista plástico (desenhos, pinturas, vídeos e fotos) residente em São Paulo. Participa de intervenções urbanas, performances, manipulações da mídia, projetos curatoriais e mostras de arte.


MAIS:

> MundoBraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo
(Giuseppe Cocco, 2009, ed. Record, 304 pág.)
Disponível, pela internet, na Livraria Cultura (R$ 42)

> Referências da resenha (só as diretamente citadas):

Agamben, Giorgio

“Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I.”, Belo Horizonte: 2004 [1995], UFMG.

“Estado de exceção”, Rio de Janeiro: 2004 [2003], Boitempo.

Andrade, Oswald de

“Os Condenados. A Trilogia do Exílio”, Rio de Janeiro: 2000 [1922, 27,34] , Globo.

“O Rei da Vela”, Rio de Janeiro: 2000 [1937], Globo.

Castro, Viveiros de

“A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia” , São Paulo: 2002, Cosac Naify.

“Eduardo Viveiros de Castro”, coleção de entrevistas organizadas por Renato Sztutman, Rio de Janeiro: 2009, Beco do Azougue (Coleção Encontros).

Cocco, Giuseppe

“MundoBraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo”, Rio de Janeiro: 2009, Record.

“O Mundo Real: Socialismo na era pós-neoliberal”, São Paulo: 2008, LP&M.

“Glob(AL). Biopoder e lutas em uma América Latina Globalizada”, c/Antônio Negri, Rio de Janeiro: 2005, Record.

Negri, Antonio & Hardt, Michael:

“Império”, Rio de Janeiro: 2005 [2000], Record.

“Multidão. Guerra e democracia na era do império.”, Rio de Janeiro: 2005 [2004], Record.

“Commonwealth”, Cambridge: 2009, Harvard Un. Press.