Monday, January 26, 2009

Política do comum. Uma alternativa à crise econômica mundial? Entrevista especial com Giuseppe Cocco

26/1/2009

Política do comum. Uma alternativa à crise econômica mundial? Entrevista especial com Giuseppe Cocco


O último mês de dezembro foi agitado para o professor Giuseppe Cocco. Ele foi o coordenador do Seminário Mundo Vix, realizado nos dias 10 a 12 de dezembro, na Universidade Federal do Espírito Santo e organizou, juntamente a Ivana Bentes, o do Fórum Livre do Direito Autoral: O Domínio do Comum, realizado nos dias 15, 16 e 17 de dezembro de 2008, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em ambos os eventos, Cocco esteve ao lado de grandes intelectuais de renome internacional, dentre eles Antonio Negri e Michael Hardt, Christian Marazzi, Yann Moulier Boutang. E é sobre os temas que esses autores debatem e sobre o que foi discutido nos dois eventos mencionados que a IHU On-Line entrevistou o professor Giuseppe Cocco por telefone.

Ele explica a ideia do comum e defende que "a verdadeira alternativa está na capacidade que nós teremos ou não de construir uma esfera política adequada à nova qualidade do trabalho. As transformações desses últimos 30 anos mudaram a própria natureza do trabalho. Trata-se de um trabalho que é cada vez mais ligado à produção de conhecimento, a sua dimensão linguística e comunicacional, portanto, social, intelectual e afetiva, ao mesmo tempo. É um trabalho que está dentro das relações sociais, integrando produção e consumo, em um processo de valorização que está dentro da circulação".

Para Cocco, mais do que pensar a relação entre o local e o global, "temos que pensar a relação entre a dinâmica constituinte debaixo e as instituições e os governos. A América do Sul, apesar de todos os seus problemas e limites, é um terreno privilegiado de renovação dos processos constituintes". Ele acredita que a crise atual aparece não como a crise do capitalismo financeiro, "mas como a crise do capitalismo contemporâneo". E explica que "todo o sistema do crédito, que pretendiam estar ligado a uma racionalidade matematizável, é na realidade baseado exatamente no crédito, na confiança, na crença e, portanto, em última instância, na relação social".

Cocco é graduado em Ciências Políticas, pela Université de Paris VIII, e em Scienze Politiche, pela Università degli Studi di Padova. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, da revista Lugar comum e Global Brasil. Cocco é autor de diversos livros entre os quais citamos Trabalho e Cidadania - Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), em parceria com Antonio Negri.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor esteve na companhia de Toni Negri e Michael Hardt, nas últimas semanas. Que temas debateram nesses dias? Quais as novidades e avanços nos estudos dos pesquisadores?

Giuseppe Cocco – Estar na companhia deles foi uma coisa bastante normal, na medida em que eu, tenho com eles um intercâmbio que dura quase 30 anos. Com relação ao Brasil, trata-se de uma relação que acontece na Rede Universidade Nômade. O próprio Negri esteve aqui em 2003, 2005 e 2006. Esta é a quarta vez que ele vem. O Michael Hardt também veio aqui várias vezes e agora está voltando para o Fórum Social Mundial, participando de mesas em Belém e no Rio de Janeiro.

Com relação aos temas que discutimos nos eventos de Vitória e do Rio de Janeiro, podemos dividi-los em dois eixos. O primeiro é a discussão sobre a crise global do capitalismo, a chamada crise financeira e, por outro lado, esta discussão sobre o conceito de comum, que quer dizer a definição de uma esfera que permita pensar a política, o governo e a propriedade para além da falsa oposição entre Estado e mercado; entre privado e público. Digamos que estes se confrontam com mais um eixo implícito neste tipo de evento que reuniu intelectuais e militantes brasileiros, latino-americanos e europeus, que é a relação entre Governo e movimentos, a relação entre Norte e Sul. A questão é a passagem da dependência para a interdependência e o desenvolvimento de uma política Sul-Sul.

IHU On-Line - Em que consiste a política do comum? Como ela pode contribuir para resolver os problemas sociais e econômicos da sociedade?

Giuseppe Cocco – A ideia da política do comum é, em primeiro lugar, a de que uma alternativa entre Estado e mercado é uma falsa alternativa. Uma maneira para entender isto é a discussão sobre a crise financeira atual. Se analisarmos o que está acontecendo, de maneira muito nítida vemos que, depois de quase 30 anos de hegemonia do discurso neoliberal sobre o mercado como o espaço de racionalidade embasado na lógica do individualismo egoísta, da competição e da concorrência, depois de décadas de privatização, desregulamentação e flexibilização, quando se dizia que o mercado era o único horizonte e que, na firmação desse horizonte, a história tinha acabado, o que assistimos agora é que por trás do mercado e da moeda, há o Estado. Todo o sistema do crédito não é ligado a nenhuma racionalidade matematizável, mas é baseado exatamente no crédito, na confiança, na crença e, portanto, em última instância, na relação social. Por trás do mercado há o Estado que, atualmente, aparece de maneira maciça dando dinheiro para os bancos e tentando impedir a precipitação sistêmica da crise.

O Estado que intervém hoje aparece como pano de fundo do mercado e o mercado como pano de fundo da intervenção estatal, na medida em que, atualmente, ela não é vinculada por nenhum modelo alternativo. Estado e mercado andam juntos, e a moeda é uma relação social. Não adianta discutir volume de moeda e de investimentos, a não ser em termos de significação e de democracia, de investimento social e de relações de força. Todo o dinheiro que faltava para os programas sociais, para a proteção de um trabalho cada vez mais precarizado, para proteger ou mobilizar a vida fora das dinâmicas da sua exploração agora aparece. Acho fundamental que esse dinheiro seja mobilizado e impresso pelas máquinas de um banco central norte-americano. Ao mesmo tempo, pensar a política do comum é dizer que nós precisamos ir além disso, o que significa que a verdadeira alternativa está na capacidade que nós teremos ou não de construir uma esfera política adequada a nova natureza do trabalho. Um trabalho que é cada vez mais ligado à produção de conhecimento, a sua dimensão linguística e comunicacional, portanto, social, intelectual e afetiva, ao mesmo tempo, é um trabalho que está dentro das relações sociais que integram produção e consumo, em um processo de valorização que está dentro da circulação.

Os caminhos para a nova política

Construir o comum significa reconhecer que o conflito entre capital e trabalho é um conflito entre essa gestão estatal e privada das relações de trabalho – pela manutenção artificial de uma separação entre a esfera da política e da economia - e a recomposição possível dessas duas esferas a partir de uma organização política e produtiva da sociedade. Significa reconhecer que há um conflito fundamental entre um sistema de mobilização do trabalho que, por um lado, desmonta a relação salarial, as conquistas sindicais e os movimentos sociais, e, por outro lado, mantém as instituições características da relação salarial, que têm discursos ideológicos, em termos de funcionamento da despesa pública e políticas sociais, característica do período anterior (industrial). Ou seja, apenas reconhece-se o trabalho quando é um trabalho assalariado. E não reconhece-se o fato de que, hoje em dia, o trabalho corresponde e diz respeito à vida como um todo. Portanto, sua mobilização diz respeito à qualidade da vida, em geral. O reconhecimento dessa dimensão produtiva da vida passa fundamentalmente pelo fato de que é preciso instaurar uma renda universal, algo que configura exatamente uma política do comum. Uma política do comum em termos de organização de luta significa, por exemplo, dentro da crise, insistir sobre a necessidade de não limitar as políticas públicas à mera defesa dos níveis de emprego (embora isso seja naturalmente necessário) mas que é preciso ampliar as políticas sociais. Um exemplo é o Bolsa Família: é preciso aprofundá-lo e desenvolvê-lo ainda mais, de forma a torná-lo menos condicional, mais valorizado e ainda mais massificado.

IHU On-Line - Qual é o papel da metrópole na revolução do comum?

Giuseppe Cocco – A metrópole tem um papel fundamental, na medida em que constitui o que era a fábrica no período industrial. A metrópole é hoje o espaço de produção. Então, a revolução do comum diz respeito à constituição democrática das redes produtivas que desenham a metrópole e que a metrópole, por sua vez, desenha, como, por exemplo, o acesso universal ao transporte público, com todas as suas implicações do que diz respeito à crítica ao modelo da circulação individual, como o automóvel. Falo aqui de todas as implicações em termos de qualidade de vida, questões que dizem respeito a outro modelo de relação com a natureza. Mas também, é na metrópole que podemos construir as condições de acesso universal e gratuito à internet, que os municípios podem propor o acesso sem fio para todo mundo como um direito que, ao mesmo tempo em que é humano e social, é um novo instrumento de mobilização produtiva. O acesso à educação também é fundamental. Há uma nova correlação entre funções habitacionais, de negócios e produtivas, que tem que ser cada vez mais integradas, ou seja, a integração metropolitana, em termos sociais e metropolitanos, é o elemento fundamental que define a capacidade produtiva de um determinado território . E esta integração depende de uma construção democrática desses territórios, quer dizer de uma recomposição entre o social, o econômico e o político.

IHU On-Line - Como é possível pensar os desafios globais a partir de uma realidade local?

Giuseppe Cocco – É possível na medida em que a realidade local é, ao mesmo tempo, global, e a própria dinâmica da globalização define essa interdependência entre o local e o global. A dinâmica da democracia dentro do processo de globalização, algo que antes parecia ser utópico e impossível, hoje em dia, devido à própria crise sistêmica dos mercados, aparece como ultra-necessário e inevitável. O que vai ter que acontecer para que os planos e as tentativas de enfrentar a crise sejam eficazes é uma renegociação, em âmbito mundial, da dinâmica da globalização. Apesar de todos os limites que, eventualmente, Obama terá, apesar do fato que com certeza não poderá manter todas as promessas, a sua própria eleição anuncia a abertura de um novo horizonte, inclusive pata para o Brasil e a América do Sul negociarem sua inserção na globalização. Mais do que pensar a relação entre o local e o global, temos que pensar a relação entre a dinâmica constituinte desde baixo e as instituições e os governos. A América do Sul, apesar de todos os seus problemas e limites, é o terreno privilegiado de renovação dos processos constituintes.

IHU On-Line - Ainda a partir da crise financeira, como podemos pensar em novas dimensões no mundo do trabalho e na instituição do comum?

Giuseppe Cocco – O interessante é retomar um pouco o que se diz respeito às características dessa crise financeira. Muitos achavam os problemas e desequilíbrios fossem gerados pela existência de uma esfera fictícia, meramente financeira, separada do capitalismo do que seria um capitalismo industrial. A realidade da crise é outra, porque, por um lado, ela tem um impacto generalizado profundo, e a cada dia parece ser mais dramático. Por outro lado, não tem nada a ver com uma separação do que seria a finança da indústria. Pelo contrário, no Brasil a crise chegou pelos grandes conglomerados industriais, como Aracruz, Votorantim, Sadia, etc. Então, a crise aparece não como a crise do capitalismo financeiro, mas como a crise do capitalismo contemporâneo. Este capitalismo contemporâneo, na realidade, é um capitalismo que precisa explorar as redes sociais, ou seja, a própria vida. E isto deve começar a ser feito por um duplo mecanismo de transformação, uma máquina que se alavanca com dois elos fundamentais. O primeiro é a difusão social do trabalho e o outro é a integração produtiva do consumo. Isto significa que é um capitalismo que não investe mais apenas o trabalho na sua organização separada, como uma economia da vida baseada na divisão fundamental entre o tempo de vida e o tempo de lazer ou entre o tempo de vida e o tempo de trabalho, mas investe na vida como um todo. Um mecanismo fundamental dessa nova dinâmica, da importância nova do capitalismo financeiro como nova forma de ser do capitalismo em geral, diz respeito aos fundos de pensão.

Os fundos de pensão e o impacto na crise

Quando os fundos de pensão se tornam, no mundo todo, fatores fundamentais no processo de financeirização é importante salientar que isso leva a uma outra economia da vida. Isto significa que uma parte da renda dos trabalhadores, ligada a aposentadoria, é mobilizada para a gestão das despesas que, até então, eram despesas públicas e que, hoje em dia, se tornam reguladas sob uma dinâmica privada no mercado das ações e das obrigações. Ao mesmo tempo, essa criação monetária que não é mais operada pelo Estado, mas pela intervenção dos fundos de pensão nos mercados, tem outra consequência que é aquela de fragmentar a composição social do trabalho na medida em que, por um lado, vai ter aqueles que têm um fundo de pensão para investir e, por outro lado, aqueles que não têm nada para investir e são objetos dessas políticas. Esta fragmentação se desdobra em outra que tem a ver com a própria figura dos trabalhadores: ou seja, por um lado, o trabalhador, enquanto poupador e detentor de um fundo de pensão, tem interesse que os títulos do seu fundo de pensão tenham um retorno financeiro importante e, por outro lado, esse mesmo trabalhador vai ser o objeto das conseqüências (com a flexibilização de seus direitos) dessa pressão para que haja retornos importantes dos investimentos financeiros.

Para ler mais:

Christian Marazzi, O lugar das meias, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009.
Sobre a crise financeira internacional leia a revista IHU On-Line número 276, intitulada A crise financeira internacional. O retorno de Keynes, e a número 278, intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx.

E sobre o mundo do trabalho, leia as seguintes edições da revista IHU On-Line: O mundo do trabalho no Brasil de hoje. Mudanças e novos desafios (nº 256); O trabalho no capitalismo contemporâneo. A nova grande transformação e a mutação do trabalho (nº 216); Mais inovação tecnológica e... piores condições de trabalho. Um paradoxo! (nº 188); Trabalho. As mudanças depois de 120 anos do 1º de maio. (nº 177); As obras coletivas e seus impactos no mundo do trabalho (nº 161); A crise da sociedade do trabalho (nº 98); Economia Solidária e a crise do mundo do trabalho (nº 66); e 1º de maio: trabalho e memória (nº 57).

Potencias constituintes na América Latina

Posse

Junho de 2008

Maiores instituições do comum

Potencias constituintes na América Latina





de Toni Negri









Na América Latina – especialmente na Bolívia (mas já, nos tempos mais recentes, no Equador, na Venezuela, na Argentina e no Brasil) – o tema do poder constituinte, do processo constituinte e do papel que nele desempenha a relação entre movimentos e poder estatal tornou-se central. Constatado este proeminente papel que o poder constituinte recobre na fase atual, procuramos compreender não somente como ele age, mas sobretudo como ele se põe em relação aos movimentos populares e/ou multitudinários que se apresentam em primeiro plano na luta pela transformação. Procedendo neste sentido, deveremos, antes de tudo, identificar alguns obstáculos teóricos e materiais que, como tais, parecem impedir a discussão do tema que estamos nos propondo: o da relação constituinte entre movimentos e governo. O primeiro elemento impeditivo é teórico: diz respeito à própria definição do poder constituinte. Nas teorias jurídicas da modernidade, o poder constituinte é apresentado como poder originário não jurídico. Ele é um fato, um evento, não uma expressão legal, não um dispositivo jurídico, nem um produto constitucional. A sua eficácia consiste em colocar em movimento o processo constitucional, mas não pode ser incluído nele. Quando a constituição começa, o poder constituinte termina. De outra maneira podemos dizer que o poder constituinte não entra na teoria das fontes do direito ou seja, no rol daquelas fontes que continuamente geram e reproduzem o sistema jurídico (na sua continuidade e transformação). Agora notem, esta exclusão do poder constituinte do sistema das fontes do direito é tudo menos inocente. A revolução, o poder popular, os movimentos multitudinários querem ser contínuos. A suspensão do poder constituinte é um ato que não encontra origem na natureza do poder constituinte, portanto, não pode estar nem mesmo no conceito. Esta suspensão é imposta do exterior, é uma força que bloqueia o processo constituinte. Se quiséssemos seguir a série de eventos sobre os quais historicamente se construiu a teoria do poder constituinte, poderíamos rapidamente concluir que a pretensão do término dos seus efeitos se chama Termidor. O Termidor se caracteriza como decisão que exclui o poder constituinte do sistema das fontes jurídicas, isto é, da continuidade do processo de produção do direito. È a negação que, frente à potência positiva, às determinações da imanência ligadas ao poder constituinte, exprime a repressão do desejo de comunidade (ou seja, de uma produção e reprodução contínua da capacidade constituinte). Mas olhemos um segundo obstáculo que exclui o poder constituinte do sistema das fontes do direito: este é histórico. Quero com isto dizer que no moderno, nas revoluções da modernidade, a exclusão do poder constituinte do sistema das fontes do direito está ligada a uma determinação material: o direito à propriedade, privada ou eventualmente (segundo as necessidades) pública, isto é, a apropriação indiscutível – da parte capitalista – do tempo da vida social futura (como função central da ordem capitalista) e desta forma a impossibilidade de modificar-se radicalmente a função. Há então um poder de exclusão que age como força agressiva contra o poder constituinte, a favor de uma série de privilégios legados à propriedade, que não podem ser transformados ou tirados. A constituição material (ou seja, o conjunto das relações sociais que toda constituição definitivamente prescreve) não pode, todavia, ser anterior ao poder constituinte (como, ao contrário, exigem os defensores do direito de propriedade): contra aquela condição material preclusiva, a hipótese constituinte quer agora que – em princípio – a constituição material, quando se exprimir em termos parasitários e/ou de exploração, possa ser radicalmente modificada. È, na prática, possível reverter este quadro? Quer dizer, assumir o poder constituinte não somente como fato originário, mas como força contínua que se instala nos processos constitucionais, como fonte de uma abertura indefinida e como capacidade de liberar o direito, a constituição social, dos limites do egoísmo proprietário e da intromissão totalitária do capitalismo? È possível inserir o poder constituinte como fonte – contínua, incansável, absoluta – de direito na Constituição, no poder constituído? Apoiados e instigados pelos casos constitucionais que estão ocorrendo na América Latina e, sobretudo, pela experiência profundamente revolucionária que está acontecendo na República da Bolívia parece ser possível dar resposta positiva a esta questão. Nos países da nova democracia, na América Latina, o poder constituinte é de fato assumido como uma força jurídica que vive e produz continuamente efeitos no interior do poder constituído, no íntimo da Constituição. O poder constituinte é movimento institucional e institucionalizante. Põe a continuidade da transformação estrutural no interior da continuidade institucional. O poder constituinte pode então ser verificado como fonte interna do ordenamento jurídico. Fonte interna, produtiva. Mas eis que disto derivam logo algumas conseqüências. Em primeiro lugar, como é evidente, uma nova definição do sistema formal das fontes – que se instalam em uma nova temporalidade entre constituição formal e material. É logo dito o que transforma a temporalidade constitucional: a constituição formal em vez de bloquear o tempo histórico, submetendo-o preventivamente aos efeitos de domínio e de antagonismo das forças sociais em luta no interior das relações capitalísticas, é subjugada ao desenvolvimento destes. A constituição não é mais o pressuposto da regulação, mas a conseqüência, sempre pontualmente registrada, dos antagonismos sociais. Em segundo lugar, recoloca-se a questão: quem comanda, qual fim persegue, qual normatividade exprime o poder constituinte nesta condição? Qual é ainda a força que – uma vez eliminado o princípio da apropriação antecipada do futuro da vida social, por parte do capitalismo, isto é, o princípio de propriedade – sustenta afirmativamente o poder constituinte e exclui, originariamente, cada Termidor? Novamente, a discussão se abre às condições materiais do processo. A força constituinte (que tem as características descritas acima) é aquela dos movimentos. Agora, estes movimentos colocam-se dentro da constituição material. Podemos, neste ponto, propor o conceito de uma constituição material em movimento. Quer dizer que a relação entre movimentos e governo poderá finalmente ser reconhecida como um processo imanente, como uma capacidade continua de produção. Mas isto não basta para fechar a discussão e entregar-nos a completude (perfeição) do processo constituinte. A experiência da América Latina nos ajuda, todavia, a avançar. Ali, de fato, os movimentos colocam-se sobre o território do comum. Quer dizer que vão além do privado e do público. Os movimentos (estes movimentos que estudamos na América Latina) querem o comum. Não apenas porque estes movimentos são (de maneira talvez contingente do ponto de vista da teoria constitucional, mas certamente absoluta, do ponto de vista da memória da opressão e dos genocídios sofridos e em nome da reconstrução ora iniciada) o produto de forças historicamente assentadas sob culturas comunitárias (movimentos indígenas). Não, não somente por isto. O fato é que, quando os movimentos colocam-se na sua potência constituinte e pretendem que esta não seja fixada dentro de alguma operação do Termidor, disto deriva uma indicação política de democracia do comum que interpreta (não somente um momento particular em tais países, mas) uma tendência geral no interior da crise atual da modernidade e do capitalismo. A experiência constituinte na América Latina pode ser considerada em termos paradigmáticos na atual contingência da crise capitalística global. Democracia do comum, mais além do privado e do público: o que significa? Precisemos os conceitos, assim como acontecem nas contemporâneas experiências constituintes na América Latina. O privado é aquela apropriação individual que prescreve uma prévia delimitação do campo da existência, da atividade laborativa e da vida do outro. O privado é apropriação e fixação do mesmo. Mas também o público é uma coisa do gênero. Também ele é apropriação, é – melhor dito – transcendência, validação necessária da apropriação. Como disse Rousseau, o Estado – enquanto estrutura pública por excelência – impõe-se como "lugar de posse da não-posse por parte das singularidades". È então a cobertura da expropriação da atividade das singularidades, a sua alienação, a figura na qual apresenta-se o público. Ele é, no capitalismo, a negação do direito de todos. Veja então, ao contrário, como se define o comum. Ele se apresenta como participação, como democracia que nasce da gestão que todas as singularidades, todos os cidadãos podem operar sobre o conjunto das suas relações e sobre o comum da sua produção. Não se dão mais exclusões, nem bloqueios, nem intervenções, a esta altura. È este um movimento que impede cada Termidor e cada bloqueio/negação da continuidade dos movimentos e do devir do comum. Teremos assim construído uma primeira síntese do movimento constituinte e de comum constituído? As velhas aporias (que faziam a mesma definição) da relação entre poder constituinte e poder constituído, entre movimentos e governo, entre liberdade e comum, tornam-se, assim, menores? No século XVII quando os iluministas falavam da democracia suíça como um modelo, falavam mais ou menos como nós estamos agora fazendo em relação à democracia boliviana. De Dürrenmatt abaixo, porém, os suíços tem-nos precavido contra as fantasias (le révéries) das Luzes: com efeito, não parece que Guglielmo Tell fosse verdadeiramente um docíssimo queer-baby e, mesmo assim, o seu fascínio era o de fundamentalista antiautoritário. Se poderá dizer o mesmo de Evo Morales? Não parece verdadeiro. A revolução boliviana que tem reinventado o comum nas formas da gestão política democrática dos bens comuns (energia e água), do reconhecimento da multidão das "nações" andinas, da extensão dos direitos econômicos e políticos a todos os cidadãos, avança radicalmente, mas com discernimento. Cautela! como queria Spinoza. Prática desutópica muito mais que exaltação utopista. È esta, aliás, a filosofia revolucionária que faz algum brilho (entre secundárias intolerâncias) Lula impôs a reconstrução democrática e multitudinária do sub-continente latino-americano, arrancando-o do "consenso de Washington". Não foi dito, porém, que esta síntese virtuosa se dê de uma vez por todas; muito menos se poderá dizer que esta síntese se dê para sempre. A aleatoriedade da relação entre poder constituinte e constituição do comum mostra sempre difícil a conclusão. Ela depende da complexidade das máquinas que serão postas em movimento quando esta síntese é procurada. Mas depende também das contradições internas, que inevitavelmente se regeneram, no interior da relação entre atividade constituinte e decisão de governo. O comum, de fato, é afirmado, cada vez de maneira diversa, no momento no qual é produzido, é constituído. O comum não fecha (não pode fazê-lo porque se o fizesse, seria ele mesmo um outro Termidor), o comum, a constituição comum reabre sempre, relança. Todavia, nos interstícios de cada retomada (relançamento) da produção constitucional (do poder constituinte), sobre todos estes interstícios de novo propõe-se a dureza e a decisão de quem quer bloquear o processo. Como organizar então uma força que mormente desbloqueie o bloqueio, que determine uma progressiva absoluta eficácia do poder constituinte, arrancando-o de todo deslizamento (desvanecimento) inconcludente? Isto é necessário: garantir a irreversibilidade do processo. Vale a pena então, realmente, ter a nossa atenção sempre mobilizada. Os espaços e as altitudes da América Latina deixaram prever, com a intensidade dos movimentos, a violência das reações. È, de qualquer maneira, "uma aventura ao contrário" aquela da colonização, da conquista e da cristianização, que aqui se abre. Os perigos são imanentes. O poder constituinte é frágil da mesma forma que é eficaz. Uma entrada (um liame) de irreversibilidade não está talvez ainda reunida (concretizada). Tenhamos presente que a democracia do comum é um exercício de vigília, contínua, sempre. Isso é o quanto nos ensina a experiência do poder constituinte na América Latina. Um paradigma difícil para fazer do direito uma arma revolucionária, e para construir instituições do comum. Se a utópica suíça das Luzes serviu para construir a Enciclopédia, a Bolívia de Evo serve para construir uma nova teoria do direito.



Junho de 2008


[Tradução de Lúcia Copetti Dalmaso, do Coletivo Attraverso]

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Giugno 2008

Maggiore Istituzioni del comune

Potenze costituenti in America Latina



di Toni Negri







In America latina – e in particolare in Bolivia (ma già, nei tempi più recenti, in Ecuador, Venezuela, Argentina, e Brasile) - il tema del potere costituente, del processo costituente e del ruolo che in esso gioca il rapporto tra movimenti e potere statale, è divenuto centrale. Constatato questo preminente ruolo che il potere costituente ricopre nella fase attuale, cerchiamo di comprendere non solo come esso agisca, ma soprattutto come esso si ponga in rapporto ai movimenti popolari e/o moltitudinari che si presentano in prima linea nella lotta per la trasformazione. Procedendo in questo senso, dovremo, prima di tutto, identificare alcuni ostacoli teorici e materiali che, come tali, sembrano precludere la discussione del tema che ci siamo proposti: quello del rapporto costituente fra movimenti e governo. Il primo elemento preclusivo è teorico: attiene alla definizione stessa del potere costituente. Nelle teorie giuridiche della modernità, il potere costituente è presentato come potere originario non giuridico. Esso è un fatto, un evento, non un'espressione legale, non un dispositivo giuridico, né un prodotto costituzionale. La sua efficacia consiste nel mettere in movimento il processo costituzionale, ma non può esserne incluso. Quando la Costituzione comincia, il potere costituente finisce. In altra maniera possiamo dire che il potere costituente non entra nella teoria delle fonti del diritto, cioè nel novero di quelle sorgenti che continuamente generano e riproducono il sistema giuridico (nella sua continuità e trasformazione). Ora, si noti, questa esclusione del potere costituente dal sistema delle fonti del diritto è tutt'altro che innocente. La rivoluzione, il potere popolare, i movimenti moltitudinari vogliono essere continui. La sospensione del potere costituente è un atto che non trova origine nella natura del potere costituente quindi non può esserci neppure nel concetto. Questa sospensione è imposta dall'esterno, è una forza che blocca il processo costituente. Se volessimo seguire la serie di eventi sui quali storicamente si è costruita la teoria del potere costituente, potremmo subito concludere che la pretesa di una sua cessazione di effetti si chiama Termidoro. Il Termidoro si caratterizza come decisione che esclude il potere costituente dal sistema delle fonti giuridiche – cioè dalla continuità del processo di produzione del diritto. È la negazione che, di fronte alla potenza positiva, alle determinazioni di immanenza connesse al potere costituente, esprime la repressione del desiderio di comunità (ovvero di una produzione e riproduzione continua della capacità costituente). Ma guardiamo ad un secondo ostacolo che esclude il potere costituente dal sistema delle fonti del diritto: esso è storico. Voglio con ciò dire che nel moderno, nelle rivoluzioni della modernità, l'esclusione del potere costituente dal sistema delle fonti del diritto è legato a una determinazione materiale: il diritto di proprietà, privata o eventualmente (secondo le necessità) pubblica, cioè l'appropriazione indistruttibile – da parte capitalista – del tempo della vita sociale futura (come funzione centrale dell'ordine capitalista) e quindi l'impossibilità di modificarne radicalmente la funzione. C'è dunque un potere di esclusione che agisce come forza aggressiva contro il potere costituente, a favore di una serie di privilegi legati alla proprietà, che non possono essere trasformati o tolti. La costituzione materiale (ovvero l'insieme dei rapporti sociali che ogni costituzione definitivamente prescrive) non può tuttavia essere anteriore al potere costituente (come invece esigono i difensori del diritto di proprietà): contro quella condizione materiale preclusiva, l'ipotesi costituente vuole allora che – in linea di principio – la costituzione materiale, quando si esprime in termini parassitari e/o di sfruttamento, possa essere radicalmente modificata. È – in pratica – possibile rovesciare questo quadro? E cioè assumere il potere costituente non solo come fatto originario, ma come forza continua che si insedia nei processi costituzionali, come fonte di un'apertura indefinita e capacità di liberare il diritto, la costituzione sociale, dai limiti dell'egoismo proprietario e dell'invadenza totalitaria del capitalismo? È possibile inserire il potere costituente come fonte – continua, instancabile, assoluta – di diritto nella Costituzione, nel potere costituito? Sostenuti e sollecitati dalle vicende costituzionali che stanno dandosi in America latina e soprattutto dall'esperienza profondamente rivoluzionaria di quanto sta accadendo nella Repubblica di Bolivia – sembra che sia possibile dare risposta positiva a questo interrogativo. Nei paesi di nuova democrazia, in America Latina, il potere costituente è infatti assunto come una forza giuridica che vive e produce continuamente effetti all'interno del potere costituito, nell'intimo della Costituzione. Il potere costituente è movimento istituzionale e istituzionalizzante. Pone la continuità della trasformazione strutturale all'interno della continuità istituzionale. Il potere costituente può dunque essere verificato come fonte interna dell'ordinamento giuridico. Fonte interna, produttiva. Ma ecco che da ciò derivano subito alcune conseguenze. In primo luogo, com'è evidente, una nuova definizione del sistema formale delle fonti – che si installano in una nuova temporalità fra costituzione formale e materiale. È presto detto che cosa trasforma la temporalità costituzionale: la costituzione formale, anziché bloccare il tempo storico, sottomettendolo preventivamente agli effetti di dominio e di antagonismo delle forze sociali in lotta all'interno dei rapporti capitalistici è sottomessa allo sviluppo di questi. La costituzione non è più il presupposto della regolazione ma la conseguenza, sempre puntualmente registrata, degli antagonismi sociali. In secondo luogo ci si ripropone la questione: chi comanda, quale fine persegue, quale normatività esprime il potere costituente in questa condizione? Qual' è dunque la forza che – una volta tolto di mezzo il principio dell'appropriazione anticipata del futuro della vita sociale – da parte capitalista – cioè il principio di proprietà – sostiene affermativamente il potere costituente e ne esclude, originariamente, ogni Termidoro? Di nuovo, la discussione si apre alle condizioni materiali del processo. La forza costituente (che ha le caratteristiche sopra descritte) è quella dei movimenti. Ora, questi movimenti si collocano dentro la costituzione materiale. Possiamo, a questo punto, proporre il concetto di una costituzione materiale in movimento. Vale a dire che il rapporto tra movimenti e governo potrà finalmente essere riconosciuto come un processo immanente, come una capacità continua di produzione. Ma questo non basta a chiudere la discussione e a consegnarci la compiutezza del processo costituente. L'esperienza dell'America Latina ci aiuta tuttavia a procedere. Lì, infatti, i movimenti si pongono sul territorio del comune. Vale a dire che vanno al di là del privato e del pubblico. I movimenti (questi movimenti che studiamo in America Latina) vogliono il comune. Non solo perché questi movimenti sono (in maniera forse contingente dal punto di vista della teoria costituzionale ma certamente assoluta dal punto di vista della memoria dell'oppressione e dei genocidi subiti e in nome della ricost

ruzione ora iniziata) il prodotto di forze storicamente assestate su culture comunitarie (movimenti indigeni). No, non solo per questo. Il fatto è che, quando i movimenti si propongono nella loro potenza costituente e pretendono che questa non sia fissata dentro alcuna operazione di Termidoro – da ciò deriva un'indicazione politica di democrazia del comune che interpreta (non solo un momento particolare in quei paesi, ma) una tendenza generale all'interno della crisi attuale della modernità e del capitalismo. L'esperienza costituente in America Latina può essere considerata in termini paradigmatici nell'attuale contingenza di crisi capitalistica globale. Democrazia del comune, oltre il privato e il pubblico: che cosa significa? Precisiamo i concetti, così come avviene nelle contemporanee esperienze costituenti in America Latina. Il privato, è quell'appropriazione individuale che prescrive una preventiva delimitazione del campo dell'esistenza, dell'attività lavorativa e della vita dell'altro. Il privato è appropriazione e fissazione del proprio. Ma anche il pubblico è una cosa del genere. Anch'esso è appropriazione, è – detto ancor meglio – trascendenza, validazione necessaria dell'appropriazione. Come disse Rousseau, lo Stato – in quanto struttura pubblica per eccellenza – s'impone come "luogo di possesso del non-possesso da parte delle singolarità". È dunque la copertura dell'espropriazione dell'attività delle singolarità, la loro alienazione, la figura nella quale si presenta il pubblico. Esso è – nel capitalismo – la negazione del diritto di tutti. Ecco allora, di contro, come si definisce il comune. Esso si presenta come partecipazione, come democrazia che nasce dalla gestione che tutte le singolarità, tutti i cittadini possono operare sull'insieme delle loro relazioni e sul comune della loro produzione. Non si danno più esclusioni, né blocchi, né introversioni, a questo punto. È questo un movimento che impedisce ogni Termidoro e ogni blocco/negazione della continuità dei movimenti e del divenire del comune. Abbiamo così costruito una prima sintesi di movimento costituente e di comune costituito? Le vecchie aporie (che ne facevano la stessa definizione) del rapporto fra potere costituente e potere costituito, fra movimenti e governo, fra libertà e comune, vengono, così, meno? Nel Settecento, quando gli illuministi parlavano della democrazia svizzera come di un modello, ne parlavano più o meno come noi stiamo ora facendo per la democrazia boliviana. Da Dürrenmatt in giù, tuttavia, gli svizzeri ci hanno messo in guardia contro le révéries dei Lumi: in effetti non sembra che Guglielmo Tell fosse davvero un dolcissimo queer-baby e comunque il suo fascino era quello del fondamentalista antiautoritario. Si potrà dire altrettanto di Evo Morales? Non sembra davvero. La rivoluzione boliviana che ha reinventato il comune nelle forme della gestione politica democratica dei beni comuni (dell'energia e dell'acqua), del riconoscimento della moltitudine delle "nazioni" andine, dell'estensione dei diritti economici e politici a tutti i cittadini, procede radicalmente ma con giudizio. Caute! come voleva Spinoza. Pratica disutopica piuttosto che esaltazione utopista. È questa d'altronde, la filosofia rivoluzionaria che da qualche lustro (pur fra secondarie insofferenze) Lula ha imposto alla ricostruzione democratica e moltitudinaria del sub continente latino-americano, strappandolo al "consenso di Washington". Non è detto, tuttavia, che questa sintesi virtuosa si dia una volta per tutte; ancor meno si potrà dire che questa sintesi si dia per sempre. L'aleatorietà del rapporto fra potere costituente e costituzione del comune mostra sempre difficile la conclusione. Essa dipende dalla complessità delle macchine che vengono messe in movimento quando questa sintesi è cercata. Ma dipende anche dalle contraddizioni interne, che inevitabilmente si rigenerano, all'interno del rapporto fra attività costituenti e decisione di governo. Il comune, infatti, è affermato, ogni volta in maniera diversa nel momento in cui è prodotto, è costituito. Il comune non chiude (non può farlo perché se lo facesse, sarebbe esso stesso un altro Termidoro), il comune, la costituzione comune riaprono sempre, rilanciano. Tuttavia, negli interstizi di ogni rilancio della produzione costituzionale (del potere costituente), su tutti questi interstizi di nuovo si propongono la durezza e la decisione di chi vuol bloccare il processo. Come organizzare dunque una forza che massimamente sblocchi il blocco, che determini una progressiva assoluta efficacia del potere costituente, strappandolo ad ogni scivolamento inconcludente? Di questo c'è bisogno: di garantire l'irreversibilità del processo. Vale la pena dunque, realisticamente, di tenere la nostra attenzione sempre mobilitata. Gli spazi e le altitudini dell'America Latina lasciano presagire, con l'intensità dei movimenti, la violenza delle reazioni. È comunque "un'avventura a rovescio" di quella della colonizzazione, della conquista e della cristianizzazione, che qui si è aperta. I pericoli sono immani. Il potere costituente è altrettanto fragile quanto è efficace. Una soglia d'irreversibilità non è stata forse ancora raggiunta. Teniamo presente che la democrazia del comune è un esercizio di veglia, continua, sempre. Questo è quanto c'insegna l'esperienza del potere costituente in America Latina. Un paradigma difficile per fare del diritto un'arma rivoluzionaria, e per costruire istituzioni del comune. Se l'utopica Svizzera dei Lumi servì a costruire l'Enciclopedia, la Bolivia di Evo serve a costruire una nuova teoria del diritto.

“O ‘fazer multidão' diz respeito à própria constituição da esfera pública”



Analisando o conceito de multidão desenvolvido pelo filósofo italiano Antonio Negri, Giuseppe Cocco, cientista político, avalia a relação de poder entre movimentos sociais, governo e Estado. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que as lutas dos setores sociais marginalizados pela sociedade, como “os sem-terra, os sem-universidade, os camelôs, os usuários dos transportes coletivos, trabalhadores informais, moradores de favelas, encontram uma nova centralidade”. Essas lutas, assegura, “já lidam com o que chamamos de ‘fazer multidão’”. E sugere: “Nosso esforço precisa ir na direção de se pensar um processo de organização e coordenação que não implique a redução dos muitos ao uno”.

Cocco é graduado em Ciências Políticas, pela Université de Paris VIII, e em Scienze Politiche, pela Università degli Studi di Padova. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, da revista Lugar comum e Global Brasil. Cocco é autor de diversos livros entre os quais citamos e Trabalho e Cidadania - Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), em parceria com Antonio Negri.


Giuseppe Cocco: “O ‘fazer multidão' diz respeito à própria constituição da esfera pública”
Por: Patricia Fachin, 28/07/2008

IHU On-Line - Para Negri, a multidão, a partir de suas necessidades corporais e materiais, nos impulsionam para a busca da liberdade. Como o senhor percebe essa multidão na atual conjuntura?
Giuseppe Cocco - Começamos pela questão conceitual mais geral, o conceito de multidão. Em primeiro lugar, é necessário lembrar que Negri não fala de multidões, mas de multidão, no singular e plural ao mesmo tempo. Nesse sentido, trata-se de uma teoria da multiplicidade. Embora vários intelectuais negrianos ou próximos do Negri falem de “multidões”, a proposta do autor é precisamente de pensar um uno que seria ao mesmo tempo múltiplo e não uma multiplicidade como diversidade de conjuntos específicos. Nesse sentido, o conceito de multidão, no singular, é bem mais potente e diferenciado do que seu uso no plural, que abre um espaço de ambigüidade com, por exemplo, o conceito de diversidade e o comunitarismo multicultural.
Nosso esforço deve ir na direção de se pensar um processo de organização e coordenação que não implique a redução dos muitos ao uno. A multidão é exatamente esse conceito, como ele diz, de “um conjunto de singularidades que cooperam entre elas se mantendo tais”, “inúmeros elementos que se mantêm diferentes uns dos outros, e ainda assim se comunicam, colaboram e agem em comum”. O “comum” de uma multidão como um e muitos ao mesmo tempo, mostra que não temos mais que escolher entre diversidade (de identidades) e alteridade.
Trata-se, pois, de um conceito teórico que responde a um duplo desafio: por um lado, ele visa construir o marco de uma política da imanência, quer dizer a construção de um referencial ético interno ao próprio processo de produção (dos valores); por outro, no nível sociológico, o esforço vai no sentido de pensar o trabalho na condição pós-moderna, ou seja da sua extrema e sistemática fragmentação social. A política da multidão é assim necessariamente uma política da imanência, e vice-versa.
A aposta na política da imanência significa assumir que toda tentativa de unificar os “muitos” - nas figuras do “povo”, da “nação” ou da “classe” - acaba abrindo o caminho à transcendência, ou seja, a uma separação do resultado da fonte, do poder soberano vis-à-vis a potência dos cidadãos. Uma separação que, em nome do “contrato social” (hobbesiano), do “interesse geral” (de Rousseau) ou da classe como categoria socioeconômica (do marxismo vulgar e/ou ortodoxo) acaba impondo o poder dos poucos (do uno) sobre os “muitos”, ou seja, a primazia do poder constituído sobre sua fonte constituinte: em nome do povo, da nação ou da classe, sempre tivemos e teremos a transformação da força da Lei (o poder dos muitos, a democracia) em Lei da força (o poder do soberano, seja ele o Rei, o Presidente, o Partido único ou algum Superior Tribunal). Uma política da imanência é uma política da multiplicidade, ou seja, uma política de radicalização democrática. Não há causalidade externa, seja ela o contrato que entrega ao soberano a potência dos sujeitos, seja ela o “interesse geral” que atribui ao Estado o papel de estabelecer uma mediação externa do conflito de classe.
Nesse sentido, se o conceito de “multidão” rompe todo tipo de ambigüidade com as categorias sócio-econômicas de classe, ele continua sendo um conceito de classe. Mas a classe da qual se fala, nesse caso, é aquela de E. P. Thompson, que existe porque se constitui no conflito. Fora do processo de sua constituição, não há nenhuma “multidão”, mas a realidade sociológica dos estilhaços em que explodiu a relação salarial. Assim, a nova dinâmica política e social, de luta e produção, diz necessariamente respeito ao “fazer multidão”.
Podemos agora discutir, em segundo lugar, a questão do “corpo”. Como disse, a proposta de uma política da multiplicidade é uma política da imanência, ou seja, ela se inscreve em uma perspectiva absolutamente materialista: sendo que a criação não tem princípio externo, ela é um processo interno à matéria, é a própria matéria que é divina. Ora, nada é mais materialista do que colocar o corpo no cerne da reflexão. Isso significa recusar toda separação entre o corpo e a alma, entre as mãos e a mente. Quando falamos do trabalho imaterial como paradigma do trabalho no capitalismo contemporâneo , estamos falando do trabalho do corpo, com suas características materiais e instrumentais bem como com aquelas intelectuais, mas também afetivas, comunicativas, cognitivas. Com efeito, trabalhar - hoje em dia - significa afetar e ser afetado.
Isso nos leva a problematizar a noção de necessidade. Pois o que define a potência de um corpo enquanto ele é materialidade dos afetos não são necessidades biológicas isoladas das determinações intelectuais e afetivas de suas relações sociais. Ao contrário, é a articulação entre esses momentos que atualiza sua potência. É à noção de desejo (cupiditas) que devemos recorrer. A produção do mundo, ou seja, do campo aberto das possibilidades, enquanto abertura das possibilidades, não é necessitada (não é biológica), mas desejante. O poder do capital está em sua capacidade de capturar o desejo pela sua redução a uma necessidade, a um único mundo: o poder e a obediência se organizam na redução do horizonte aberto dos mundos possíveis “criados” pelo desejo à necessidade de um mundo só, aquele da acumulação e de seus valores transcendentes, sejam eles teológicos ou mercadológicos. A emancipação passa exatamente pela afirmação dessa dimensão livre e produtiva do desejo, ou seja, a liberdade é o produto e ao mesmo tempo a condição do fazer-se da multidão, das singularidades que cooperam entre elas se mantendo tais, da dinâmica material da política da multiplicidade.

IHU On-Line - Ao mesmo tempo em que a multidão busca a transformação social, ela é criminalizada pela sociedade e o Estado?
Giuseppe Cocco - A configuração sociológica atual é caracterizada pelo aprofundamento dos processos de segmentação e fragmentação do trabalho e mais em geral das relações sociais. A fenomenologia da passagem é aquela da “precarização” e fragmentação da relação de emprego ao passo que o trabalho se estende à sociedade como um todo. Processo geral que é teorizado em termos de emergência da sociedade do risco , na qual os diferentes fragmentos (individuais) teceriam entre eles relações (transações) de mercado, dominadas pelo egoísmo possessivo. Na década de 1990, isso foi teorizado, nos Estados Unidos, como sendo um processo de “brasilianização”: fragmentação social de um mercado de trabalho ultra-hierarquizado, no qual o desemprego se mistura com o trabalho informal e níveis quase nulos de proteção social. O livro de Mike Davis, de maneira paradoxal para uma intervenção que se afirma como sendo “de esquerda”, sobre a generalização mundial das favelas, vai um pouco no mesmo sentido. A novidade está no fato de que o que antes era a herança do subdesenvolvimento agora se tornou também uma conseqüência da modernização. Isso porque o chão de fábrica não concentra mais a produção em grandes plantas industriais e com elas, desapareceram, os grandes contingentes, compactos e homogêneos, de operariado industrial. A fábrica se espalhou na sociedade e se tornou terciária. Como Marx o tinha previsto, quando toda a sociedade se torna fábrica, esta tende a desaparecer e, com ela, desaparece também a relação salarial. Isso não significa, como dizem as apologias da pós-modernidade, que a exploração se torna marginal. Pelo contrário, ela também se difunde na sociedade e traduz-se, como sabemos, na perda de direitos, enfraquecimento das organizações sindicais de tipo operário, fragmentação das formas de organização social, não reconhecimento da dimensão produtiva da vida enquanto tal. Mas isso tampouco significa que o único caminho da resistência se torne uma paroxística (e impotente) defesa de uma via neo-industrial, ou seja, o saudosismo pelas antigas formas de exploração. Ao mesmo tempo, as lutas dos setores sociais “marginais”, como, por exemplo, os “sem terra”, “sem universidade”, os camelôs, os usuários dos transportes coletivos, os trabalhadores informais, os moradores das favelas, os desempregados encontram – o que em nada reduz sua dramaticidade e a violência que devem enfrentar - uma nova centralidade. Essas lutas já lidam com o que chamamos de “fazer multidão”, ou seja, com o desafio de juntar a organização da luta com aquela da organização da produção.

IHU On-Line - Como o pensamento de Foucault sobre sociedade disciplinar e a sociedade de controle nos ajudam a compreender as relações estabelecidas entre o poder público e os movimentos sociais?
Giuseppe Cocco - Creio que a noção mais apropriada proposta por Foucault, para apreender as tecnologias contemporânea de poder, é aquela de biopoder. Foucault tem teorizado três grandes formas de poder. Uma, que ele chamava de forma arcaica, era aquela do poder soberano que se exercia essencialmente como um “poder de fazer morrer e de deixar viver”. Ou seja, o soberano arcaico não determinava as formas de cooperação (as formas de vida), mas as deixava acontecer e as capturava por meio de uma ação meramente negativa, de seu poder, punitivo, de “fazer morrer”. A segunda forma é aquela – típica da modernidade industrial – da sociedade disciplinar. Talvez, é a teorização foucaultiana mais conhecida: seu paradigma é o panopticum de Bentham . Sua mecânica é aquela do disciplinamento dos corpos dos indivíduos dentro das engrenagens de uma máquina social moldada em torno de instituições “concentracionárias” que têm como protótipo o campo de trabalho, ou seja, a prisão e as grandes plantações escravocratas das colônias americanas. Na disciplina, vigia-se e pune-se para corrigir, para domesticar. A terceira forma de poder, da qual fala o filósofo francês é a própria de uma sociedade de “segurança”: por um lado, essa tecnologia de poder corresponde ao que Deleuze chamou, um pouco mais tarde, de sociedade de controle. Pelo outro, trata-se de “um poder de fazer viver e deixar morrer”, ou seja, de um poder que não visa mais os corpos dos indivíduos, mas o conjunto da população considerada como espécie, ou seja, como meio ambiente. Entre essas três formas de poder não há, em Foucault, uma linha de sucessão progressiva, mas uma relação de sobreposição. Se a forma mais contemporânea funciona como paradigma de referência, ela se articula com as outras em dosagens e graus diferentes. Assim, a sociedade de “segurança” continua contendo elementos da disciplina e do poder soberano (arcaico), mas sua gestão do “risco” sobredetermina os outros elementos gerenciais.
Sabemos que os esforços de Foucault para analisar as tecnologias de poder foram apreendidos de diferentes maneiras, contraditórias entre elas: por um lado, temos os intelectuais que – na esteira dos trabalhos de François Ewald – usaram o conceito de poder de “segurança” e de biopoder para, numa perspectiva apologética da condição pós-moderna, teorizar a sociedade de risco, ou seja, um retrocesso generalizado das relações sociais como sendo algo desejável ou inevitável. Numa abordagem simétrica e, pois, parecida, das teorizações de Foucault, encontramos as posições catastrofistas de Agamben (ou de Paulo Arantes no Brasil) que assumem o biopoder como um horizonte totalitário intransponível, um dispositivo de controle absoluto da vida cuja fenomenologia seria o eclipse da política na forma do estado de exceção.
Com Negri e também com Deleuze, podemos – ao contrário – assumir uma posição bem diferente. Se é verdade que o poder investe a vida em sua totalidade, ou seja que por trás da precarização do trabalho assistimos ao fenômeno de uma nova escravidão (toda a vida é investida pela valorização do capital), isso implica em uma afirmação produtiva da vida que o capital e suas tecnologias de segurança não podem nunca negar nem assumir como seu produto. Para que o biopoder possa existir enquanto poder sobre a vida, ele necessariamente precisa de uma biopolítica: de uma potência da vida que lhe é anterior. O conceito geral de sociedade de segurança abre-se a uma alternativa radical: biopolítica contra biopoder, sendo que a biopolítica (a potência produtiva da vida da multidão de singularidades que cooperam entre elas se mantendo tais) é primeira, poderíamos dizer “primordial”.
Nesse contexto, fica evidente que a relação entre movimentos e constituição da esfera pública se torna central. Exatamente como acontece com o MST ou a Central Única das Favelas (Cufa) ou a CUT. Não há contradição – em termos de formas de luta e de prática política – entre a autonomia desses movimentos e as negociações que eles conseguem realizar com os poderes públicos. As lutas, o “fazer multidão”, diz respeito à própria constituição da esfera pública. Algo que nos leva ao debate sobre essa esfera intermediária que foi chamada de “governança”. Se o termo é completamente sobredeterminado pela retórica do mercado, a noção de uma instância intermediária de governo flexível e descentralizado é adequada aos movimentos biopolíticos: é isso que aconteceu com o orçamento participativo de Porto Alegre, com as formas mais avançadas de Planejamento Estratégico das cidades como foi o caso no ABC paulista, com os movimentos regionais e de organização local. O outro lado da “governança” é o fato, pois, da radicalização democrática e da construção do comum: aqui, a esfera intermediária da “governança” pode coincidir com aquela da radicalização democrática, onde a democracia é o “fazer multidão”: a cooperação das singularidades que se mantêm como tais.

IHU On-Line - Muitos movimentos sociais reclamam da mudança de posicionamento do governo Lula com os ativistas, após as eleições. Quando um partido chega ao poder, embora não queira, é obrigado a mudar as formas de relações com o capital e fazer alianças aceitando cooperar com políticas neoliberais, por exemplo? É isso que acontece no governo atual? Como entender, nesse sentido, as relações de poder e criminalização estabelecidas entre Estado e movimentos sociais?
Giuseppe Cocco - Aqui há duas questões: por um lado, a criminalização dos movimentos e, por outro, a questão das alianças de governo. O governo Lula não pode ser acusado de criminalizar os movimentos, muito pelo contrário. Podemos dizer que sua relação com os movimentos é – às vezes – limitada pelas suas alianças, como pode acontecer no caso das relações complexas e contraditórias com o agronegócio e, ao mesmo tempo, com os movimentos ligados aos indígenas, aos “povos da floresta” ou à luta contra o latifúndio. Mas não há como governar sem alianças e, nesse nível, o problema não é apenas do governo, mas da capacidade dos movimentos abrirem brechas que desloquem essas alianças em direção ao terreno da radicalização democrática.
Aliás, apesar das contradições, sobretudo no que diz respeito ao meio ambiente e ao desmatamento, temos o exemplo da conduta exemplar do governo na questão da demarcação das reservas indígenas, em particular em Roraima, na Raposa Serra do Sol. O eventual retrocesso em direção à manutenção dos interesses mais regressivos das oligarquias do latifúndio não virá do governo, mas do funcionamento do Estado, de uma eventual decisão do STF e da retórica soberanista de setores do Exército. Diante disso, precisamos de uma política da multiplicidade e também de um horizonte pós-soberano. A paz não está no (impossível) muro que separaria o Brasil da Venezuela, mas da entrada do vizinho setentrional no Mercosul, uma integração que avança lentamente, não por acaso, por via da obstrução no Senado das oligarquias mais retrogradas do Norte.
No que diz respeito às alianças, não se trata de algo que acontece “depois” da chegada ao poder, mas que faz parte da própria homologação sem a qual não se chega ao poder. O mais simples e evidente desse mecanismo está inscrito no próprio processo de construção da representação: todo candidato (sobretudo majoritário) tem medo da grande mídia da qual depende parte de sua visibilidade para se eleger. A democracia representativa, que já é uma conquista, não deixa de ser um mecanismo de corrupção da própria democracia. Portanto, a questão é outra: diante do marco inevitável de alianças e, ainda mais grave, do funcionamento do Estado como aparelho burocrático de comando, quais são as brechas que um determinado governo abre para a radicalização democrática, ou seja, para transformar o poder? Ora, essas brechas dependem das bases sociais do governo, de sua capacidade de mobilização.
O governo Lula, com toda sua moderação, conseguiu realizar muitas coisas: uma política assistencial mais avançada que já aconteceu, as reformas universitárias, as políticas para agricultura familiar, a inflexão da política econômica, o desdobramento do PAC em PAC social, com investimentos expressivos de urbanização, construção de moradias etc. São alguns primeiros passos, mas já são potentes. É uma ótima base para querer ainda mais. Mas não adianta “querer” mais. Precisamos saber como “fazer mais” e, na condição atual, “fazer mais” é “fazer multidão”. Ora, em nossas metrópoles, avançar no terreno constitutivo da multidão implica, por um lado, no aprofundamento da construção do comum (renda universal, urbanização de favelas, reforma do ensino e dos transportes públicos, acesso universal e gratuito à Internet) e, por outro, capacidade de enfrentar a questão da ilegalidade, da violência como regime fundamental de regulação da população. Seria hipocrisia pura dizer que isso depende da ação do governo federal, ou em geral de uma ação de cima para baixo. O episódio do Exército no morro da Providência mostra a complexidade de um biopoder que, no Brasil, mistura o poder de matar com o de fazer viver e nos aparece como algo extremamente hierarquizado e difuso ao mesmo tempo. Mas nós precisamos apreender esse biopoder hierarquizado e difuso do ponto de vista da biopolítica, da multiplicidade de sujeitos que vivem e produzem e sem os quais o biopoder seria, muito simplesmente, nu e impotente. Precisamos estar dentro dos planos de resistência e criação que os movimentos das periferias produzem.

Contribuição da mídia
Por outro lado, a grande mídia monopolista (e os interesses econômicos que a bancam) parece não estar mensurando o impacto do discurso a dois gumes que ela faz sobre a impunidade. Como é possível pedir o “rigor da Lei” contra os camponeses sem-terra e clamar pelo “respeito dos direitos” em favor dos banqueiros e dos corruptores? Não se trata apenas da desigualdade diante da Lei, mas do fato que os trabalhadores sem-terra (os “muitos”) são a Lei, ou seja a legitimidade ao passo que os interesses que, aparentemente, o Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul defende dizem respeito os “poucos” (algumas empresas multinacionais). Se não fosse trágica, a postura da grande mídia seria até ridícula: depois de ter pedido a criminalização dos movimentos, multiplica os editoriais contra o “Estado policial” depois da prisão de Daniel Dantas e Cia.

IHU On-Line - Como o senhor percebe o subsídio do Estado em relação aos movimentos sociais? Essa relação gera dependência do movimento social?
Giuseppe Cocco - Isso precisa ser visto de maneira não ideológica. Claro que os movimentos precisam manter sua autonomia. Mas de que movimentos estamos falando? Quando falamos dos movimentos dos “sem voz”, fica evidente que sem uma política pública de distribuição de renda não é possível pensar na autonomia dos movimentos. Ora, o que o governo Lula demonstrou, e isso continua “aterrorizando” a elite, é que essa autonomia é possível, sim. A reeleição de Lula se fez contra a vontade do conjunto da grande mídia monopolista que agiu como verdadeiro partido de oposição. E esse evento foi possível porque a política social do primeiro governo Lula abalou seriamente os tradicionais currais eleitorais.
Esse é o debate. A autonomia dos movimentos, sua capacidade de “fazer multidão” depende da constituição do comum. Isso torna a questão do governo central. No entanto, não do governo como “política de Estado”, mas do governo como espaço e terreno de democratização e apropriação pública dos mecanismos de construção do comum. O terreno fundamental dessa radicalização democrática se encontra nos municípios, nas cidades.
De qualquer modo, não se trata apenas disso. Algo que municípios e movimentos deveriam pensar é saber como as instâncias de governos decidem sua atuação nos conselhos de administração de um monte de empresas estatais, privadas (com capital público), fundos de pensão etc. Como decidem todos esses sindicalistas que participam da gestão de fundos bilionários? Por um lado, é uma grande conquista que eles participem desses conselhos de administração. Por outro, é uma grande ocasião perdida que não haja uma prestação de contas “participativa” da atuação deles. Como podemos, depois de tanto ter falado do Orçamento Participativo de Porto Alegre, deixar passar essa ocasião de ver como funciona o ventre do capitalismo? Por que o debate sobre telefonia no Brasil deve ser apenas uma questão de gabinetes de bancos, juízes, governo federal e não um debate público?

IHU On-Line - As ações realizadas pelos diversos movimentos sociais são apresentadas como crime e irresponsabilidade pelos segmentos conservadores da sociedade? Que valores arraigados na sociedade fazem com que os movimentos sejam deslegitimados?
Giuseppe Cocco - Não vejo nenhuma criminalização dessas lutas pela sociedade. Vejo, sim, setores do Estado tentarem esse caminho, em particular com o MST. Algo que pode chegar a ter alguma efetividade, mas com certeza é ilegítimo. Trata-se, me parece, de uma visão bem curiosa da relação entre legitimidade e legalidade. Os mesmos que clamam pelo rigor da lei contra o MST invocam suas garantias contra algemas e prisões de banqueiros. Com certeza, no Brasil, a novidade não está tanto na desigualdade dos cidadãos diante da lei, mas na dimensão política que o enfrentamento adquiriu, uma dimensão política do enfrentamento da qual depende uma retórica do mercado que, sem força, fica nua como a crise das subprimes norte americanas.
Tudo isso se torna ainda pior se lembramos, além da campanha da elite para criminalizar o MST, aquela sobre os temas da “impunidade” que explora de maneira cínica e insuportável a violência. Nesse nível, temos sim uma criminalização dos jovens pobres e negros que se traduz, por exemplo, na atual política de segurança do governo do Estado do Rio de Janeiro. A grande mídia é a grande responsável por estarmos uma situação sem saída. Pegamos só um exemplo: há alguns meses, por ocasião do funesto episódio do menino arrastado durante um roubo de carro por outros meninos, explorou-se a dor insuportável dos pais para pedir a diminuição da idade penal, atacar o Estatuto da Criança e do Adolescente e pedir mais repressão. O massacre de uma criança foi usado para legitimar o massacre das crianças. Recentemente, assistimos à repetição dessa vampirização cínica. Dessa vez, a dor comercializada era aquela dos pais de um outro menino, metralhado pela polícia no carro da mãe, sempre no Rio de Janeiro. O insuportável chega ao paroxismo. Quem deu legitimidade social à metralha como método de regulação biopolítica da população são esses “papagaios de pirata” que surfam a onda terrível da criminalização dos jovens.
Nas favelas cariocas, nas periferias paulistas, bem como nos campos de refugiados palestinos ou nas periferias francesas ou norte-americanas, o “criminoso”, o “homem-bomba”, não é um agressor externo, mas o genuíno produto do mundo que passa na publicidade e na novela. A maioria da população é materialmente excluída desse mundo das novelas, ao mesmo tempo em que tem acesso inesgotável às suas dimensões simbólicas, imaginárias e discursivas. O que preenche o vazio desse descompasso é a guerra! E, aparentemente, os membros do Conselho Superior do Ministério Público gaúcho gostariam de confirmar essa situação de guerra também nos conflitos onde o MST e outros movimentos conseguem construir sentido, luta e organização.
A transformação dos anjos (jovens pobres, negros e mestiços) em diabos, em comparsas do crime do poder, não é um efeito secundário do sensacionalismo televisivo, mas seu principal produto! Há uma correlação precisa entre a exibição da fantástica impotência dos meninos miseráveis do tráfico e a sabotagem midiática de todos os programas sociais do governo Lula (Bolsa Família, Cotas para negros e pobres, ProUni etc).
Diante disso, lembremos o que Spinoza dizia: só a liberdade funda a Paz e, com ela, o melhor governo. A liberdade não entendida apenas como liberdade de pensamento, mas como produção da vida. Ou seja, a paz não é dada pela “segurança”: ao contrário, é a organização do consenso em República que garante a segurança.
Não há segurança sem proteção social para todos! Bem como não há confiança entre desiguais. Não há como pensar uma paz como “solução” do paradoxo contemporâneo da ampliação dos “direitos humanos” em face da multiplicação dos “homens sem direitos”. Só existirá paz se pudermos voltar a contar com os anjos da Cidade de Deus para a construção da cidade dos homens. Só os homens livres, que produzem seus direitos ao mesmo tempo em que os afirmam, constituem a paz.