Monday, May 04, 2009

Uma crise sistêmica do capitalismo flexível, globalizado e financeirizado (Giuseppe Cocco)


“A contradição estrutural que está na base da crise é aquela, classicamente marxista, entre desenvolvimento das forças produtivas e relações (capitalistas) de produção”. E constata que “as forças produtivas hoje são aquelas de um trabalho mobilizado diretamente dentro da sociedade, sem passar pela relação salarial formal”, escreve Giuseppe Cocco, em artigo que enviou para ser publicado na revista IHU On-Line. Segundo ele, “o trabalho que constitui as forças produtivas contemporâneas, por um lado, é de tipo cognitivo, afetivo, linguístico, terciário e, pelo outro, precário, não reconhecido, flexível, formal e informal ao mesmo tempo”.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciências Políticas pela Università degli Studi di Padova e pela Université de Paris VIII. Cursou mestrado e doutorado em História Social, pela Université de Paris I. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o pesquisador é membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, das revistas Lugar comum e Global Brasil. Cocco é autor de diversos livros, entre os quais citamos Trabalho e cidadania - Produção e direitos na era da globalização (São Paulo: Editora Cortez, 2000) e Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), este último em parceria com Antonio Negri.

Confira o artigo.

Vivemos uma crise sistêmica e ninguém sabe qual vai ser seu desfecho. Essa incerteza radical, transformada numa crise de confiança é o que define, paradoxalmente, a certeza quanto à dimensão única da crise.

Dizer que a crise é sistêmica significa dizer que ela é fato das contradições estruturais do capitalismo contemporâneo. Essas contradições não são, como superficialmente poderia parecer, o fato do descolamento da esfera financeira com relação à esfera real (produtiva) da economia, algo que se desdobraria na contradição entre um capitalismo bom (que seria o industrial) e um capitalismo ruim (que seria o financeiro). A contradição estrutural que está na base da crise é aquela, classicamente marxista, entre desenvolvimento das forças produtivas e relações (capitalistas) de produção. Se essa contradição - como dissemos - é clássica, sua mecânica é completamente nova: as forças produtivas hoje são aquelas de um trabalho mobilizado diretamente dentro da sociedade, sem passar pela relação salarial formal. Quer dizer, o trabalho que constitui as forças produtivas contemporâneas, por um lado, é de tipo cognitivo, afetivo, linguístico, terciário e, pelo outro, precário, não reconhecido, flexível, formal e informal ao mesmo tempo.

Diferentemente do que acontecia no regime industrial, que acabou implicando numa relação entre “inclusão” e “subordinação” do trabalho, o capitalismo flexível, globalizado e financeirizado “inclui” (os excluídos) sem eliminar (ou diminuir) a “exclusão”. A base do novo regime de acumulação é essa. Por um lado, as novas relações sociais de produção investem a nossa vida como um todo (e não apenas o tempo de trabalho); por outro, não se reconhece (nem protege) a dimensão produtiva de nossas vidas. Isso se traduz em uma série de contradições que já encontramos nas chamas “bolhas” das Bolsas de Valores. Lembremos a bolha da New Economy: a hiper-valorização dos ativos empresariais ligados às novas tecnologias da informação e das redes desmoronou diante da incapacidade capitalista de eliminar e/ou marginalizar as formas de cooperação que caracterizam a rede: a gratuidade, o copyleft, a ética hacker do trabalho colaborativo em rede. A crise do subprime é de uma intensidade ainda maior porque ela não se limita a um segmento específico (como era a New Economy), mas é o fato do mecanismo geral de governança do capitalismo global: a relação crédito/débito. Ao passo que a precarização do trabalho e a privatização dos serviços se afirmavam como principais tecnologias de comando, a expansão da base do crédito ia substituindo a dinâmica dos salários reais. A expansão do crédito se torna fundamental e obrigatória: porque ele substitui e/ou complementa salários cada vez mais precários, porque a privatização transforma os serviços de saúde, educação, moradia etc., em mercadorias às quais se terá acesso por meio do crédito (e da capitalização, como no caso das aposentadorias) e, enfim, porque - reciprocamente - a produtividade do trabalho (o desenvolvimento das forcas produtivas) passa a depender ainda mais do que antes, do acesso a esse conjunto de serviços.

Capitalismo industrial e finanças se misturam e são indistinguíveis

A expansão das finanças, quer dizer, a expansão da base financeira, não é nem a causa dos problemas nem o resultado da cobiça dos financistas. Por um lado, queremos dizer que os financistas não são mais gananciosos do que os industriais e, pois, que não há um lucro que seria melhor do que o outro, pois sempre se trata da expropriação pelos poucos da riqueza produzida pelos muitos; a chegada da crise no Brasil mostra muito bem que capitalismo industrial e finanças se misturam e são indistinguíveis: são grupos industriais produtores de commodities que quase quebraram por causa de suas especulações financeiras (Votorantim, Sadia, Aracruz).

Por outro lado, a expansão financeira é mais um sintoma do que uma causa. Um sintoma que não deixa de ser violento, das novas formas de exploração. Vejam bem, dizer isso não significa reduzir o julgamento ético sobre a violência intolerável do mecanismo financeiro, pelo contrário, significa amplificá-lo, atribuindo-o ao capitalismo como um todo e não a sua forma degenerada. A crise do subprime é, por um lado, o desmoronamento da ilusão de resolver pelo crédito securitizado a incapacidade dos salários dos pobres e dos imigrantes de pagar o acesso à moradia. Pelo outro, a transferência da precariedade das condições de trabalho no nível da precariedade da própria base financeira: os ativos se tornam tóxicos e somente os governos podem digeri-los.

O capitalismo pode, claro, se regenerar. Mas, por enquanto, ninguém sabe como. Essa incerteza não é apenas uma questão de prazos. Há alguns impasses que não tem solução. Vejamos os dilemas de Barack Obama diante da quebra (que era anterior) da indústria automobilística norte-americana. Salvá-la parece problemático em termos econômicos e sociais. Deixá-la falir também! Como é possível sair desse impasse? Só por meio de inovações radicais, das quais apenas os movimentos sociais são portadores. Lembremos, entre o G8 e o G20 há as manifestações de Seattle e Genova bem como os fóruns sociais mundiais de Porto Alegre. Os movimentos são fundamentais para sair democraticamente da crise porque só eles são capazes de constituir condições novas, isto é, de uma dinâmica constituinte. Nesse sentido, poderíamos dizer que uma das maiores ameaças - no Brasil - à saída da crise está na criminalização dos movimentos (do MST em particular) conduzida pelo Presidente do STF.

Não é um problema de justiça (ou seja, no fato de haver dois pesos no uso da Constituição: seu rigor é invocado para reprimir os sem-terra e suas garantias para proteger os Crimes do Colarinho branco), mas de constituição. A Constituição, a Lei da lei, só pode ser a partir de um processo constituinte, quer dizer, daquele momento onde a fonte (a legitimidade) e o direito (a lei) coincidem. No Brasil contemporâneo, não precisamos abrir muitos livros de constitucionalismo para lembrar as duas configurações (opostas) dessa situação: uma é aquela do AI5, ou seja, do Estado de Exceção, onde o rigor da Lei aparece como intensidade da decisão, efetividade sem legitimidade, onde a Lei é, na realidade, lei da Força (não é por acaso que os mesmos meios de informação que tanto sabatinam o presidente do STF sejam tentados de fazer uma revisão histórica da Ditadura militar, chamando-a de DitaBranda); a outra é aquela da Constituinte de 1988, da radicalização democrática que os movimentos produzem pela participação e a produção da sociedade.

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