De:
HARDT, Michael. A sociedade mundial de controle. In: Alliez , Éric . Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.
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A SOCIEDADE MUNDIAL DE CONTROLE
Michael Hardt (1996)
[Tradução de Maria Cristina Franco Ferraz]
Deleuze nos diz que a sociedade em que vivemos hoje é a sociedade de controle, termo que toma emprestado do mundo paranóico de um William Burroughs. Ao propor esta visão, ele afirma seguir Michel Foucault, mas devo reconhecer que é difícil encontrar, onde quer que seja na obra de Foucault – em livros, artigos ou entrevistas –, uma formulação clara da passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle. De fato, ao anunciar tal passagem, Deleuze formula, após a morte de Foucault, uma idéia que não encontrou expressamente formulada na obra de Foucault.
A formulação dessa idéia por Deleuze, no entanto, é bastante exígua: o artigo mal passa de cinco páginas. Ele nos diz muito poucas coisas concretas sobre a sociedade de controle. Ele constata que as instituições que constituíam a sociedade disciplinar – escola, família, hospital, prisão, fábrica, etc – estão, todas elas e em todos os lugares, em crise. Os muros das instituições estão desmoronando de tal maneira que suas lógicas disciplinares não se tornam ineficazes mas se encontram, antes, generalizadas como formas fluidas através de todo o campo social. O “espaço estriado” das instituições da sociedade disciplinar dá lugar ao “espaço liso” da sociedade de controle. Ou, para retomar a bela imagem de Deleuze, os túneis estruturais da toupeira estão sendo substituídos pelas ondulações infinitas da serpente. Enquanto a sociedade disciplinar forjava moldagens fixas, distintas, a sociedade de controle funciona por redes flexíveis moduláveis, “como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como um peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro”1.
O que Deleuze nos propõe é, de fato, uma simples imagem dessa passagem, uma imagem sem dúvida bela e poética, mas não suficientemente articulada para nos permitir compreender essa nova forma de
1 Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, p.242.
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sociedade. Para fazer isso, pretendo relacioná-la a uma série de outras passagens que foram propostas para caracterizar a sociedade contemporânea. Pretendo, portanto, tentar desenvolver a natureza dessa passagem, estabelecendo sua relação com a passagem da sociedade moderna à sociedade pós-moderna, tal como expressa na obra de autores como Fredric Jameson, mas também com o “fim da história” descrito por Francis Fukuyama e com as novas formas de racismo em nossas sociedades, segundo Étienne Balibar e outros autores. Mas, sobretudo, pretendo situar a formação de que fala Deleuze em termos de dois processos que Toni Negri e eu tentamos elaborar ao longo dos últimos anos: qualificamos o primeiro desses processos de enfraquecimento da sociedade civil, o que, assim como a passagem à sociedade de controle, remete ao declínio das funções medidoras das instituições sociais; com o segundo, ocorre a passagem do imperialismo, produzido, inicialmente pelos Estados-nação europeus, ao império, à nova ordem mundial, que se entende hoje em torno dos Estados Unidos, com as instituições transnacionais e o mercado mundial. Dito de outro modo, quando falo de império entendo uma forma jurídica e uma forma de poder bastante diferente dos velhos imperialismos europeus. Por um lado, segundo a tradição antiga, o império é o poder universal, a ordem mundial, que talvez se realize hoje pela primeira vez. Por outro, o império é a forma de poder que tem por objetivo a natureza humana, portanto o bio-poder. O que gostaria de sugerir é que a forma social tomada por esse novo Império é a sociedade de controle mundial.
NÃO HÁ MAIS FORA
A passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle se caracteriza, inicialmente, pelo desmoronamento dos muros que definiam as instituições. Haverá, portanto, cada vez menos distinções entre o dentro e o fora. Trata-se, efetivamente, de um elemento de mudança geral na maneira pela qual o poder marca o espaço, na passagem da modernidade à pós-modernidade. A soberania moderna sempre foi concebida em termos de território – real ou imaginário – e da relação desse território com seu fora. É assim que os primeiros teóricos modernos da sociedade, de Hobbes a Rousseau, compreendiam a ordem civil como um espaço limitado e interior que se opõe à ordem exterior da natureza, ou que dela se distingue. O espaço circunscrito da ordem civil, seu lugar, se define por sua separação dos espaços
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exteriores da natureza. De modo análogo, os teóricos da psicologia moderna compreenderam as pulsões, as paixões, os instintos e o inconsciente metaforicamente, em termos espaciais, como um fora no âmbito do espírito humano, como um prolongamento da natureza bem no fundo de nós. A soberania do indivíduo repousa, aqui, em uma relação dialética entre a ordem natural das pulsões e a ordem civil da razão ou da consciência. Por fim, os diversos discursos da antroposofia moderna sobre as sociedades primitivas funcionam, freqüentemente, como o fora que define as fronteiras do mundo civil. O processo de modernização repousa nesses diferentes contextos, na interiorização do fora da civilização da natureza.
No mundo pós-moderno, entretanto, essa dialética entre dentro e fora, entre ordem civil e ordem natural chegou ao fim. Como diz Fredric Jameson: “O pós-modernismo é o que se obtém quando o processo de modernização e a natureza desapareceram para sempre”2 É claro que ainda temos florestas, gafanhotos e tempestades em nosso mundo, e ainda temos a idéia de que nosso psiquismo se submete à ação de instintos e paixões, mas não temos natureza no sentido que essas forças e esses fenômenos não são mais entendidos como fora, tampouco percebidos como originais e independentes do artifício da ordem civil. Em um mundo pós-moderno, todos os fenômenos e forças são artificiais, ou, como dizem alguns, fazem parte da história. A dialética moderna do fora e do dentro foi substituída por um jogo de graus e intensidades, de hibridismo, e artificialidade.
Em segundo, lugar, o fora também entrou em declínio do ponto de vista de uma dialética moderna bastante diferente, que definia a relação entre o público e o privado na teoria política liberal. Os espaços públicos da sociedade moderna, que constituem o lugar da vida política liberal, tendem a desaparecer no mundo pós-moderno. Segundo a tradição liberal, o indivíduo moderno que está em casa, em seus espaços privados, considera o público como o seu fora. O fora é o lugar próprio da política, em que a ação do indivíduo fica exposta ao olhar dos outros e em que ela procura ser reconhecida. Ora, no processo da pós-modernização, esses espaços públicos se vêem cada vez mais privatizados. A paisagem urbana não é mais a do espaço público, do
2 F. Jameson, Postmadernism, or the cultural logic of late capitalism, Duke, Duke University Press, 1991, p. IX.
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encontro casual e do agrupamento de todos, mas dos espaços fechados das galerias comerciais, das auto-estradas e dos condomínios com entrada privativa. A arquitetura e o urbanismo de certas megalópolis, como Los Angeles e São Paulo, tenderam a limitar o acesso público e a interação, criando, antes, uma série de espaços interiores protegidos e isolados. Poderíamos igualmente observar que o subúrbio parisiense se tornou uma série de espaços amorfos e não-definidos que favorecem o isolamento, em detrimento de qualquer interação ou comunicação. O espaço público foi a tal ponto privatizado que já não é mais possível compreender a organização social em termos da dialética espaços privados/espaços públicos, ou dentro/fora. O lugar da atividade política liberal moderna desapareceu, e, assim, a partir dessa perspectiva, nossa sociedade imperial pós-moderna se caracteriza por um déficit do político. De fato, O lugar da política foi desrealizado.
Sob esse aspecto, a análise da sociedade do espetáculo, efetuada por Guy Debord há trinta anos, parece mais apropriada e mais premente do que nunca. Na sociedade pós-moderna, o espetáculo é um lugar virtual ou, mais exatamente, um não-lugar da política. O espetáculo é simultaneamente, unificado e difuso, de tal modo que é impossível distinguir um dentro de um fora – o natural do social, o privado do público. A noção liberal do público como o lugar do fora, onde agimos sob o olhar dos outros, tornou-se ao mesmo tempo universalizada (pois somos hoje permanentemente colocados sob olhar dos outros, sob a observação das câmeras de vigilância) e sublimada, ou desrealizada, nos espaços virtuais do espetáculo. O fim do fora é, assim, o fim da política liberal.
Enfim, na perspectiva do império, ou da ordem mundial atual, é ainda em um terceiro sentido que não há mais um fora, em um sentido propriamente militar. Quando Francis Fukuyama afirma que a passagem histórica que estamos vivendo se define pelo fim da história, ele quer dizer que a era dos conflitos principais terminou; dito de outro modo, a potência soberana não mais afrontará seu Outro, não mais será confrontada com seu fora, mas, antes, estenderá progressivamente suas fronteiras até enlaçar todo o planeta com seu domínio próprio. A história das guerras imperialistas, inter-imperialistas e anti-imperialistas se fechou. O fim dessa história introduziu o reino da paz. Só que na realidade, entramos na era dos conflitos menores e interiores. Cada guerra imperial é uma guerra civil, uma ação de polícia, de Los Angeles e a ilha de Granada até Mogadício e Sarajevo. De fato, a
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separação das tarefas entre os aparelhos exterior e interior do poder (entre exército e polícia, entre CIA e FBI) torna-se cada vez mais vaga e mal determinada.
Em nossas próprias palavras, o fim da história de que fala Fukuyama marca o fim da crise que está no centro da modernidade, com a idéia do conflito coerente – tendo função de definição – que foi o fundamento e a razão de ser da soberania moderna. A história terminou precisamente e, apenas, na medida em que é concebida em termos hegelianos – como o movimento de uma dialética de contradições com o jogo de negações e de superações absolutas. Os pares que definiam o conflito moderno se embaralharam. O Outro que podia limitar um Eu soberano se estilhaçou, tornou-se indistinto, de modo que não há mais um fora para circunscrever o lugar da soberania. Ao passo que, durante a Guerra Fria, numa versão exagerada da crise da modernidade, todo inimigo imaginável dos clubes de jardinagem para senhoras e dos filmes hollywoodianos até os movimentos de liberação nacional podia ser identificado como comunista, ou seja, como expressão do inimigo unificado. O fora, era o que dava coerência à crise do mundo moderno e imperialista. Atualmente, é cada vez mais difícil para os ideólogos dos Estados Unidos nomear o inimigo, ou melhor: parece que há, em todos os lugares, inimigos menores e imperceptíveis. O fim da crise da modernidade engendrou uma proliferação de crises menores e mal definidas na sociedade imperial de controle, ou, como preferimos dizer, gerou uma oni-crise.
Convém lembrar, aqui, que o mercado capitalista é uma máquina que sempre foi de encontro a qualquer divisão entre o dentro e o fora. O mercado capitalista é contrariado pelas exclusões e prospera incluindo, em sua esfera, efetivos sempre crescentes. O lucro só pode ser gerado pelo contato, pelo compromisso, pela troca e pelo comércio. A realização do mercado mundial constituiria o ponto de chegada dessa tendência. Em sua forma ideal, não há um fora do mercado mundial: o planeta inteiro é seu domínio. Poderíamos utilizar a forma do mercado mundial como modelo para compreender a forma da soberania imperial em sua totalidade. Da mesma maneira, talvez, com que Foucault reconheceu no panóptico o diagrama do poder moderno e da sociedade disciplinar, o mercado mundial poderia fornecer uma arquitetura de diagrama (mesmo não sendo arquitetura) para o poder imperial e a sociedade de controle.
O espaço estriado da modernidade constrói um lugar perpetua-
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mente fundado em um jogo dialético com o fora e a ele submetido. O espaço da soberania imperial, ao contrário, é liso. Poderia parecer isento das divisões binárias das fronteiras modernas, ou de qualquer estria, mas na realidade é atravessado, em todos os sentidos, por tantas linhas de fissura que apenas aparentemente constitui um espaço uniforme. Neste sentido, à crise claramente definida da modernidade se substitui uma oni-crise na estrutura imperial. Nesse espaço liso do império, não há o lugar do poder: ele está em todos os lugares e em nenhum deles. O império é uma u-topia, ou, antes, um não-lugar.
O RACISMO IMPERIAL
O fim do fora, que caracteriza a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle, revela certamente uma de suas faces nas configurações que combinam racismo e alteridade em nossas sociedades. De início, devemos salientar que se tornou cada vez mais difícil identificar os procedimentos gerais do racismo. Com efeito, ouvimos, incessantemente os políticos, a mídia e até mesmo os historiadores· afirmarem que o racismo recuou progressivamente nas sociedades modernas, desde o fim da escravidão até os conflitos de descolonização e os movimentos pelos direitos civis. Certas práticas tradicionais e específicas do racismo entraram, sem dúvida alguma, em declínio e seríamos tentados a identificar no fim das leis do apartheid na África do Sul a clausura simbólica de toda uma época de segregação racial. No entanto, em nossa perspectiva, é evidente que o racismo não recuou, mas, ao contrário, de fato aumentou no mundo contemporâneo, tanto em extensão como em intensidade. Ele só parece ter declinado por ter mudado de forma e de estratégias. Se tomamos como paradigmas dos racismos modernos as divisões maniqueístas entre dentro e fora e as práticas de exclusão (na África do Sul, na cidade colonial, no Sul dos Estados Unidos ou na Palestina), devemos agora colocar a seguinte questão: qual é a forma e quais são as estratégias do racismo na sociedade imperial de controle de hoje?
Vários analistas descrevem essa passagem como um deslizamento, na forma dominante de teoria do racismo, de uma teoria racista fundada na biologia para uma teoria racista baseada na cultura. A teoria racista dominante na modernidade e as práticas de segregação que a acompanham concentram-se em diferenças biológicas essenciais entre as raças. O sangue e os genes constituiriam, por detrás das diferenças de cor dá pele, a verdadeira substância da diferença racial.
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Concebem-se assim, pelo menos implicitamente, os povos dominados como diferentes dos humanos, como pertencentes a uma ordem de seres diferente, de outra natureza. De fato, vêm-nos à lembrança vários exemplos de discurso colonialista que descrevem os índios utilizando-se de qualificativos animais, como não sendo completamente humanos. Tais teorias racistas modernas, fundadas na biologia, subentendem uma diferença ontológica, tendem para tal diferença entendida como uma ruptura necessária, eterna e imutável na ordem dos seres. Em reação a essa posição teórica, o anti-racismo moderno toma posição contra a noção do essencialismo biológico, afirmando enfaticamente que as diferenças entre as raças são, antes, constituídas pelas forças sociais e culturais. Esses teóricos anti-racistas modernos operam a partir da crença de que o construtivismo social deve nos liberar da camisa-de-força do determinismo biológico: se nossas diferenças são determinadas social e culturalmente, então todos os seres humanos são, em princípio, iguais e pertencem à mesma ordem ontológica, à mesma natureza.
No entanto, a passagem ao império, à sociedade de controle, à pós-modernidade, acarretou um deslizamento na direção dominante da teoria racista, de maneira que as diferenças biológicas, como representação-chave do ódio e do medo raciais, foram submetidas por significantes sociológicos e culturais. Desse modo, a teoria racista imperial surpreende, pela retaguarda, o anti-racismo moderno, e de fato coopta e alista seus argumentos. A teoria racista imperial concorda em dizer que as raças não constituem unidades biológicas isoláveis e que não se poderia dividir a natureza em raças humanas diferentes. Ela reconhece igualmente que o comportamento dos indivíduos, suas capacidades e aptidões não são nem o produto de seu sangue nem mesmo de seus genes, mas se devem ao fato de pertencerem a diferentes culturas historicamente determinadas3. Assim, as diferenças não seriam fixadas nem imutáveis, mas efeitos contingentes da história social. A teoria racista pós-moderna e a teoria anti-racista moderna dizem, com efeito, em grande parte a mesma coisa, e é difícil diferenciá-las nesse aspecto. Na verdade, é precisamente porque se supõe que essa argumentação relativista e cultura lista seja necessariamente anti-racista que a ideologia dominante de toda nossa sociedade parece hoje hostil
3 Cf. E. Balibar e I Wallerstein, Race, nation, classe, Paris, Découverte, 1988.
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ao racismo e que a teoria racista pós-moderna aparentemente não é racista de forma alguma.
Deveríamos entretanto examinar mais de perto o modo de funcionamento da teoria racista imperial. Étienne Balibar caracteriza esse novo racismo como diferencialista, racismo sem raça, ou, mais precisamente, racismo que não mais se apóia em um conceito biológico de raça. Se a biologia, como fundamento e sustentação do racismo, foi abandonada, a cultura é levada a preencher o papel que a biologia ocupava. Estamos habituados a pensar que a natureza e a biologia são fixas e imutáveis, enquanto a cultura é maleável e fluida: as culturas podem mudar na história e se misturar, gerando híbridos infinitamente. Há, no entanto, um limite para a flexibilidade das culturas na teoria racista pós-moderna. Em última análise, as diferenças entre as culturas e as tradições são insuperáveis. Segundo a teoria racista pós-moderna, seria vão, e até mesmo perigoso, permitir ou impor uma mistura de culturas: servos e croatas, hutus e tutsis, afro-americanos e coreano-americanos devem permanecer separados. A posição cultural não é menos “essencialista”, enquanto teoria da diferença social, do que uma posição biológica, ou, pelo menos, ela estabelece uma base teórica igualmente forte para a separação e a segregação sociais. Trata-se de uma posição teórica de um pluralismo indiscutível: todas as identidades são, em princípio, iguais. Esse pluralismo aceita todas as diferenças em nossas identidades, sob a condição de concordarmos em agir tendo por base essas diferenças de identidade, preservando-as, assim, como indicadores talvez contingentes, mas totalmente sólidos, de separação social. A substituição teórica da raça ou da biologia pela cultura encontra-se, assim, paradoxalmente metamorfoseada em teoria da preservação da raça. Esse deslizamento para a teoria racista mostra-nos como a teoria imperial e pós-moderna da sociedade de controle pode adotar aquilo que geralmente se concebe como uma posição anti-racista – ou seja, como uma posição pluralista contra todos os indicadores necessários da exclusão racial –, conservando ao mesmo tempo um sólido princípio de separação social.
Nesse estágio, devemos observar cuidadosamente que a teoria racista imperial da sociedade de controle é uma teoria da segregação; e não da hierarquia. Enquanto a teoria racista moderna estabelece, como condição fundamental que torna necessária a segregação, uma hierarquia entre as raças, a teoria imperial não opina a respeito da superioridade ou da inferioridade inerentes a raças ou grupos étnicos
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diferentes. Ela considera isso pura contingência, uma questão prática. Em outras palavras, a hierarquia entre as raças não é entendida como causa, mas como efeito das circunstâncias sociais. Por exemplo, os alunos afro-americanos de determinada região têm, nos testes de aptidão escolar, resultados em geral mais fracos do que os alunos de origem asiática. A teoria imperial não enxerga, aí, o resultado de uma inferioridade racial necessária, mas de diferenças culturais: a cultura dos americanos de origem asiática atribui à educação uma importância maior, encoraja os alunos a estudar em grupo, e assim por diante. A hierarquia entre diferentes raças só é determinada a posteriori, como efeito de suas culturas, ou seja, a partir de sua performance. Segundo a teoria imperial, a hegemonia e a submissão das raças não é uma questão teórica, mas advêm de uma livre competição, de uma espécie de lei do mercado da meritocracia cultural.
A prática racista, sem dúvida alguma, não corresponde necessariamente à teoria racista. A partir do que acabamos de ver, no entanto, é claro que a prática racista, na sociedade de controle, viu-se privada de um suporte central: ela não mais dispõe de uma teoria da superioridade racial, entendida como fundadora das práticas modernas de exclusão racial. Ora, segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari:
“O racismo europeu [...] nunca procedeu por exclusão, nem por atribuição de
alguém designado como Outro. [...] O racismo procede por determinação das
distâncias de desvio, em função do rosto homem branco, que pretende integrar, em
ondas cada vez mais excêntricas e retardadas, os traços que não lhe são
conformes. [...] Do ponto de vista do racismo, não há exterior, não há pessoas
do fora”.4
De fato, Deleuze e Guattari nos levam, portanto, a conceber a prática racista não em termos de exclusão, mas enquanto estratégia de inclusão diferencial. Nenhuma identidade é designada como Outro, ninguém i: excluído do campo, não há fora. Se não estamos inteiramente convencidos de que, como pretendem Deleuze e Guattari, esse foi sempre o caso, essa é, certamente, uma excelente' descrição da condição da sociedade de controle. Pois assim como a teoria racista pós-
4 Mille plateaux, Paris, Minuit, 1980, p.218.
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moderna não pode colocar, como ponto de partida, diferenças essenciais entre as raças humanas, a prática racista imperial não pode começar por uma exclusão do Outro racial. O próprio da dominação branca é de engajar inicialmente o contato com a alteridade para, em seguida, submeter as diferenças, segundo os graus de afastamento do elemento branco. Isso nada tem a ver com a xenofobia, que é o ódio e o medo face ao bárbaro desconhecido. É um ódio nascido da proximidade, e que se desenvolve a partir dos graus de diferença em relação ao vizinho.
Isso não significa que nossas sociedades estejam completamente, isentas de exclusão racial; elas são seguramente percorridas por numerosas linhas constituindo obstáculos raciais, em todas as paisagens urbanas, no mundo inteiro. O que é importa é, portanto, que a exclusão racial geralmente aparece como resultado da inclusão diferencial. Hoje seria um erro colocar, como paradigma da hierarquia racial, as leis do apartheid sul-africano ou o código segregacionista que existia no Sul dos Estados Unidos. A diferença não está inscrita no texto das leis, e a imposição da alteridade não chega ao ponto de designar alguém como Outro. O império não pensa as diferenças em termos absolutos: ele jamais coloca as diferenças raciais como diferença de natureza, mas sempre como diferença de grau; ele jamais as coloca como necessárias, mas sempre como acidentais. A submissão é efetuada nos regimes de práticas cotidianas mais móveis e flexíveis, mas que criam hierarquias racionais não menos estáveis e brutais.
A forma e as estratégias adotadas pelo racismo pós-moderno contribuem para evidenciar, de maneira mais geral, o contraste entre soberania moderna e soberania imperial. O racismo colonial, o racismo da soberania moderna, começa por empurrar a diferença até o extremo; a seguir, em um segundo momento, ele recupera o Outro como fundamento negativo do Eu. A construção moderna de um povo se encontra estreitamente implicada nessa operação. Um povo não se define somente em termos de passado comum e desejos ou potencial comuns, e sim, antes de mais nada, em uma relação dialética com seu Outro, seu fora. Um povo – quer seja diaspórico ou não – se define sempre em termos de um lugar, seja ele virtual ou real. Já a ordem. imperial nada tem a ver com essa dialética. Na sociedade de controle, o racismo imperial ou diferencial integra os outros em sua ordem e, em seguida, orquestra tais diferenças em um sistema de controle. As noções fixas e biológicas dos povos tendem, pois, a se dissolver em uma
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multiplicidade fluida e amorfa, atravessada, sem dúvida alguma, por linhas de conflito e de antagonismo, sem que nenhuma delas apareça como fronteira fixa e eterna. A superfície da sociedade imperial desloca-se continuamente, de tal forma que ela desestabiliza qualquer noção de lugar. O momento central do racismo moderno se produz em sua fronteira, na antítese global entre dentro e fora. Como afirmou W. E. B. Du Bois, há quase cem anos, o problema do século XX é o problema da barreira da cor. Mas, o racismo imperial, pensando talvez antecipadamente no próximo século, repousa, antes, no jogo das diferenças e na gestão de microconflitualidades em uma zona de contínua expansão.
É claro que há muitas pessoas em todo o mundo para as quais o relativismo racial do império e seu movimento primeiro de inclusão universal são, por si só, ameaçadores. Estar fora oferece certa proteção, certa autonomia. Nesse sentido, pode-se ver na emergência de diversos discursos da diferença, racial ou étnica, essencial ou original, uma reação de defesa contra a inclusão imperial. Tanto o confucionismo em expansão na China como os fundamentalismos religiosos nos Estados Unidos e no mundo árabe fundam, a seu modo, a identidade do grupo em origens antigas e, em última instância, como incomensurável em relação ao mundo exterior. É assim que se habituou a compreender os conflitos étnicos em Ruanda, nos Bálcãs e mesmo no Oriente Médio como o ressurgimento de alteridades antigas, irrefreáveis e irreconciliáveis. Mas, em nosso ponto de vista, tais diferenças e conflitos não poderiam ser compreendidos no contexto de origens perdidas na noite dos tempos; é preciso, ao contrário, recolocá-los na configuração imperial de hoje. O império sempre aceita as diferenças raciais e étnicas que encontra, e sabe utilizá-las; mantém-se à distância, observa esses conflitos e intervém quando um ajuste se faz necessário. Toda tentativa de permanecer outro, com relação ao império, é vã. O império se nutre de alteridade, relativizando e gerindo-a.
DA GERAÇÃO E CORRUPÇÃO DA SUBJETIVIDADE
O fim do fora, ou a ausência gradual de distinção entre dentro e fora, na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, tem importantes implicações para a forma da produção social da subjetividade. Uma das teses centrais mais comuns nas análises institucionais de Deleuze e Guattari, Foucault, Althusser e outros, é que a subjetividade não é originária, dada a priori, mas se forma pelo
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menos até um certo ponto, no campo das forças sociais. As subjetividades que interagem no plano social são substancialmente criadas pela sociedade. Nesse sentido, tais análises institucionais gradativamente esvaziaram de seu conteúdo qualquer noção de subjetividade pré-social para enraizar firmemente a produção da subjetividade no funcionamento das principais instituições sociais, tais como a prisão, a família, a fábrica e a escola. Deve-se enfocar dois aspectos desse processo de produção. De início, não se considera a subjetividade como algo fixo ou dado. É um processo de constante engendramento. Quando você é cumprimentado pelo seu chefe na oficina, ou é chamado no corredor pelo diretor do colégio, uma subjetividade se forma. As práticas materiais oferecidas ao sujeito no contexto da instituição – quer se trate de ajoelhar-se para rezar ou de trocar centenas de fraldas formam o processo de produção de sua própria subjetividade. De maneira reflexiva, o sujeito é, portanto, submetido à ação, engendrado através de seus próprios atos. Em seguida, as instituições fornecem sobretudo um lugar discreto (o lar, a capela, a sala de aula, a oficina) onde se opera a produção da subjetividade. As diversas instituições da sociedade moderna deveriam ser consideradas como um arquipélago de fábricas de subjetividade. No decurso de uma vida, um indivíduo entra nessas diversas instituições (da escola à caserna e à fábrica) e delas saem de maneira linear, por elas formado. Cada instituição tem suas regras e lógicas de subjetivação: “A escola nos diz: ‘Você não está mais na sua família’; e o exército diz: ‘Você não está mais na escola’5 Em contrapartida, no lado de dentro dos muros de cada instituição, o indivíduo está pelo menos parcialmente protegido das forças das outras instituições – no convento, em princípio se está em segurança em relação ao aparelho da família; em casa, em princípio se está fora do alcance da disciplina da fábrica. A relação entre dentro e fora é central para o funcionamento das instituições modernas; com efeito, o lugar claramente delimitado das instituições se reflete na forma regular e fixada das subjetividades produzidas.
Na passagem para a sociedade de controle, o primeiro aspecto da condição disciplinar moderna ainda é válido, certamente, quer dizer, as subjetividades continuam a ser produzidas na fábrica social. De fato, as instituições sociais produzem subjetividade mais intensamen-
5 Idem p. 254.
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te do que nunca. Poderíamos dizer que o pós-modernismo é o que obtemos quando a teoria moderna do construtivismo social é levada ao extremo e toda subjetividade é reconhecida como artificial. A passagem não é, portanto, de oposição mas de intensificação. Como dissemos acima, a crise contemporânea das instituições significa que os espaços fechados que definiam o espaço limitado das instituições deixaram de existir; de maneira que a lógica que funcionava outrora principalmente no interior dos muros institucionais se estende, hoje, a todo campo social. Caberia, no entanto, observar que esta oni-crise das instituições varia muito de acordo com o caso. Por exemplo, nos Estados Unidos, a proporção da população implicada em uma família de tipo nuclear decresce constantemente, enquanto a proporção da população carcerária cresce de maneira constante. Mas pode-se também dizer dessas duas instituições, família nuclear e prisão, que ambas estão igualmente em crise em todos os lugares, no sentido de que o lugar de sua efetividade é cada vez mais indefinido. Os muros das instituições desabam; de modo que se torna impossível distinguir fora e dentro. Não se deveria pensar que a crise da família nuclear tenha acarretado um declínio das forças patriarcais; pelo contrário, os discursos e as práticas que invocam os “valores da família” parecem investir todo o campo social. A crise da prisão significa igualmente que as lógicas e técnicas carcerárias se estenderam, progressivamente, a outros campos da sociedade. A produção da subjetividade na sociedade imperial de controle tende a não se limitar a lugares específicos. Continuamos ainda em família, na escola, na prisão, e assim por diante. Portanto, no colapso generalizado, o funcionamento das instituições é, ao mesmo tempo, mais intensivo e mais disseminado. Assim como o capitalismo, quanto mais elas se desregram melhor elas funcionam. De fato, começa-se a saber que a máquina capitalista só funciona se esfacelando. Suas lógicas percorrem superfícies sociais ondulantes, em ondas de intensidade. A não-definição do lugar da produção corresponde à indeterminação da forma das subjetividades produzidas. As instituições sociais de controle no. império poderiam, portanto, ser percebidas em um processo fluido de engendramento e de corrupção da subjetividade.
O controle é, assim, uma intensificação e uma generalização da disciplina, em que as fronteiras das instituições foram ultrapassadas, tornadas permeáveis, de forma que não há mais distinção entre fora e dentro. Dever-se-ia reconhecer que os aparelhos ideológicos de Esta-
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do também operam na sociedade de controle, e talvez com mais intensidade e flexibilidade do que Althusser jamais imaginou.
Tal passagem não se restringe apenas aos países economicamente mais avançados e poderosos, mas tende a se generalizar no mundo inteiro, em diferentes graus. A apologia da administração colonial visava à criação de instituições sociais e políticas nas colônias. As formas não-coloniais de dominação contemporânea implicam igualmente a exportação de instituições. O projeto de modernização política nos países subdesenvolvidos ou dependentes tem como finalidade principal estabelecer um conjunto estável de instituições que estão constituindo a espinha dorsal de uma nova sociedade civil. É necessário lembrar que os regimes disciplinares necessários para estabelecer o sistema taylorista mundial de produção exigiram a existência de toda uma gama de instituições sociais e políticas. Não é difícil apontar exemplos dessa exportação, direta, individualizada, de instituições (que apenas indicam um processo mais geral e difuso), em que instituições-mães dos Estados Unidos e da Europa adotam e protegem instituições ainda balbucíantes: sindicatos oficiais, como a AFL, formam e estimulam sucursais estrangeiras; economistas do mundo desenvolvido contribuem: para a criação de instituições financeiras e ensinam a responsabilidade fiscal; e até mesmo parlamentos e o Congresso dos Estado Unidos ensinam as formas e os procedimentos de governo. Em suma, enquanto no processo de modernização os países mais poderosos exportavam, para os países dependentes, formas institucionais, no atual processo de pós-modernização o que se exporta é a crise geral das instituições. A estrutura institucional do império é como um programa de computador que conteria um vírus, de forma que ele modularia e corromperia continuamente as formas institucionais que o cercam. Devemos esquecer qualquer noção de seqüência linear de formas pelas quais cada sociedade deveria passar – do suposto “estágio primitivo” até a “civilização” –, como se, atualmente, as sociedades da América Latina ou da África pudessem tomar a forma que a sociedade européia tinha há cem anos. Cada formação social contemporânea está ligada a todas as outras, como parte do projeto imperial. Aqueles que hoje exigem com veemência uma nova constituição da sociedade civil, como meio de transição para se sair dos Estados socialistas ou de regimes de ditadura, são simplesmente nostálgicos de um estádio anterior da sociedade capitalista e estão presos ao sonho de uma modernização política que de fato não era assim tão cor-de-rosa quando ainda tinha
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certa efetividade. Mas pouco importa: a pós-modernização imperial faz disso tudo, irrevogavelmente, algo do passado. Tendencialmente, a sociedade de controle está, em todos os lugares, na ordem do dia.
CONCLUSÕES
Gostaria de propor três hipóteses em relação à sociedades de controle – três hipóteses embrionárias, mas que talvez possam contribuir para o debate. Primeira hipótese. A sociedade de controle (imperial ou pós-moderna) se caracteriza pela corrupção. Já a sociedade moderna, como se sabe, se caracterizava pela crise, ou seja, por uma contradição bipolar e uma divisão maniqueísta. Pensem, se quiserem, na Guerra fria ou no modelo moderno do racismo. A sociedade de controle, ao contrário, não se organiza em torno de um conflito central, mas em uma rede flexível de microconflitualidades. As contradições, na sociedade imperial, são múltiplas, e proliferam em todos os lugares. Os espaços dessa sociedade são impuros, híbridos. O conceito que a caracteriza, portanto, não é o de crise, mas o de oni-crise ou, como prefiro dizer, de corrupção.
Não se deve dar aqui um sentido nem moral nem apocalíptico ao conceito de corrupção. É preciso concebê-lo à maneira de Aristóteles, como o processo inverso ao da geração, como um devir dos corpos, um momento no vaivém da formação e deformação das subjetividades. É necessário pensá-lo, portanto, segundo sua etimologia latina: com-rumpere, esfacelar-se. Se a máquina capitalista só funciona se esfacelando, como bem dizem Deleuze e Guattari, a sociedade de controle também se esfacela e só funciona se esfacelando. Eis sua corrupção.
Segunda hipótese. A sociedade de controle representa uma etapa posterior em direção a uma sociedade propriamente capitalista, no sentido de que ela propõe uma forma de soberania ou uma forma de governo que tende para o campo de imanência. Ora, parece-me que, na época moderna, sempre houve um conflito entre a transcendência da soberania e a imanência do capitalismo. O conceito de soberania moderna sempre marcou uma transcendência, ou seja, uma superioridade e uma distância entre o poder (do Estado por exemplo) e as potências da sociedade. Até mesmo a noção de instituição na sociedade disciplinar, com sua territorialização e estriamento do espaço social, indicava uma certa distância, uma certa transcendência em relação às forças sociais imanentes. Já o capitalismo não é uma forma transcendente. Segunde Deleuze e Guattari: “o capitalismo define um campo
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de imanência e não pára de preencher esse campo. Mas esse campo desterritorializado se encontra determinado por uma axiomática [...]”6. O desmoronamento dos muros das instituições que caracteriza a passagem para a sociedade de controle constitui uma passagem para o campo de imanência, para uma nova axiomática social, talvez mais adequada a uma soberania propriamente capitalista. Mais uma vez, como o próprio capitalismo, a sociedade de controle só funciona se esfacelando. Com a sociedade de controle, chegamos, enfim, a uma forma de sociedade propriamente capitalista, que a terminologia de Marx denomina a sociedade da subsunção real.
Terceira e última hipótese. Não se pode pensar a sociedade de controle sem se pensar o mercado mundial. O mercado mundial, segundo Marx, é o ponto de partida e o ponto de chegada do capitalismo. Com a sociedade de controle, chegamos finalmente a esse ponto, o ponto de chegada do capitalismo. Como o mercado mundial, ela é uma forma que não tem fora, fronteiras, ou então possui limites fluidos e móveis. Para retomar o título de minha exposição, a sociedade de controle já é, de modo imediato, uma sociedade mundial de controle.
6 L'anti- Œdipe, Paris, Minuit, 1973, p.298.
HARDT, Michael. A sociedade mundial de controle. In: Alliez , Éric . Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.
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